segunda-feira, 16 de novembro de 2020

"O sol há de brilhar mais uma vez"

Hoje, dia de eleição, impossível não me lembrar de meu pai e do prazer que ele tinha em votar. Ele acreditava que teríamos um país com salários mais justos e com menos desigualdade social. Votei com convicção, mas não tenho as mesmas esperanças de outrora. Não me vejo com a felicidade e a esperança que meu pai tinha ao escolher alguém que o representasse. Ele valorizava tanto o voto que votou mesmo em uma cadeira de rodas. No final da década de 80, acompanhei o engajamento de meu pai e um sonho realizado: escolher o presidente do país. E não foram poucas as decepções que se seguiram. E da esfera federal à estadual, quando se pensa em Santa Catarina, a desilusão foi ainda maior. Meu pai, um operário, um sindicalista, era MDB, partido que se opunha à ditadura e à conservadora ARENA. Tínhamos nomes de respeito, como Nelson Wedekin, e, no cenário nacional, Ulisses Guimarães. Bons e ilusórios tempos, afinal, aprovamos uma Constituição solidária com objetivos fundamentais de “construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”. Após algumas conquistas no início deste século, nos últimos anos retrocedemos e fomos surpreendidos por uma parcela grande da população que enaltece os anos de chumbo, colocando a economia acima das causas sociais. Como consequência, (re)nascem os muitos preconceitos que não foram extintos e se fortalece uma direita de extrema. A alegria durou pouco. Vimos aquele partido que parecia nos representar virar do avesso e colocar, por exemplo, um batalhão da PM em cima dos professores que exigiam melhores condições de trabalho e salário. Nem os idosos escaparam do autoritarismo do governador Pedro Ivo, lembra-se dele? Um opositor à ditadura revelou-se um ditador. E o que tivemos depois foi pedreira: Casildo Maldaner, Paulo Afonso, Luiz Henrique da Silveira, entre outros. Recuso-me a falar do Amin. Que pesadelo! E em Florianópolis mantém-se o conservadorismo como bandeira, basta ouvir a propaganda eleitoral. Estou do lado esquerdo, porque ser de esquerda está muito além de ser comunista, petista e balançar uma bandeira vermelha com foice e martelo. Ser de esquerda é ser, verdadeiramente contra injustiças sociais, por isso, não queremos bandido morto, porque o único bandido que morre é o pobre e negro. Ser de esquerda é respeito acima de tudo, inclusive às diversas religiões, afinal, se o Estado é laico, não se pode defender apenas um deus. Ser de esquerda é investir na ciência e em pesquisas, valorizando as universidades que tanto nos beneficiam com a erradicação de doenças, por exemplo. Ser de esquerda é lutar para que se tenha justiça social, que todos os cidadãos tenham direito à vida, à moradia, à lazer, à educação e à cultura. Ser de esquerda é ser livre para pensar e agir. O problema é que a maioria dos políticos brasileiros, por pura vaidade, em uma briga de cão e gato, ou gato e rato, só pensam no poder, outro problema maior ainda é defendermos lados que, bem lá no fundo, pouco têm representado um povo, à margem, que precisa de saneamento básico, não de asfalto; de creche, não de curso de inglês. Quando assumem cargos, políticos em geral só estão do lado do poder, da elite, como há anos nos mostra a história. “Viu-se conservador em política, porque o pai o era, o tio, os amigos da casa, o vigário da paróquia, e ele começou na escola a execrar os liberais.” Tal trecho do livro “Esaú e Jacó”, de Machado de Assis, reforça como se estrutura a política. Estar à esquerda ou à direita vai muito além da revolução russa, pois já havia oposição no Brasil Império, que estava diretamente ligada ao partido Republicano e aos ideais franceses de igualdade, fraternidade e liberdade. Vale ressaltar, no entanto, que os membros desse partido defendiam interesses de uma elite, apesar de serem contra a escravidão, por exemplo. E ser comuna é estar do lado do povo, simples assim, não necessariamente do lado de Lenin. Ser de esquerda é ser jacobino, é sonhar com uma revolução. Já ser de direita é estar do lado de quem tem o poder, logo, do lado do patrão, do empresário. Ser de direita é manter-se, mesmo sem o ser, um privilegiado, branco, hétero e macho. Ser de direita é defender apenas um deus, é não ter empatia, é proteger a si e a sua família, o resto que se exploda. Ser de direita é ser monarquista, defender um rei, um palácio, uma família real, pois a plebe precisa se esforçar um pouco mais, o governo não pode ficar dando peixe, não é mesmo? E daí você me pergunta se quero viver em Cuba ou na Venezuela. Não, querido amigo, quero viver num país livre e justo, independente de que lado estejamos. Bandeiras não tiram ninguém da miséria e não trazem justiça social, ações sim. Não pretendo ser radical, mas como ser humano não posso estar do lado de um desenvolvimento não-sustentável, do lado de quem desrespeita índios, negros, mulheres e apresenta, como discurso único, em uma pandemia que assola o mundo: “todos vão morrer um dia”. Há, caro leitor, diferença grande em morte matada e morte morrida como já nos disse o Severino de João Cabral de Mello Neto. O domingo finda. As apurações já começaram e um partido de direita parece vencer mais uma vez as eleições em Florianópolis. Por enquanto nada novo, apesar dos sinais de alguma mudança. A vida segue e os bem eleitos já pensam nas eleições de 2022. Se meu pai estivesse aqui ele excomungaria os resultados e talvez dissesse: “Todo povo tem o governo que merece”. “Pera aí, eu não mereço não.” O fato é que meu desânimo, querido leitor, se deve mais ao povo que aos políticos. Ao atravessar a ponte para ir votar eu vi uma cidadã jogando lixo pela janela e também vi um motorista ao celular. Na fila da seção, vi gente que nem sabia qual era sua seção. E não foram poucas pessoas ao meu redor que não votaram porque não tiveram tempo de escolher um candidato. Sem falar daquelas que, na última hora, pegaram um santinho qualquer de um partido para votar, com uma única condição: só não pode ser esquerdista. E para encerrar, um país que leva a sério um processo democrático, como a eleição, um caso de sexo em uma repartição pública levaria um político a perder o cargo e jamais ser reeleito. Triste! O povo teme os candidatos de “esquerda”, que defendem causas sociais, prefere os que fazem do gabinete, um quarto de motel. Será que um dia meus olhos voltarão a brilhar como os de meu pai em frente a uma urna? Eleições de 15 de novembro de 2020.

quarta-feira, 4 de novembro de 2020

“Só quem já morreu na fogueira Sabe o que é ser carvão”

Como manezinhas e catarinenses fomos, durante a semana, enxovalhadas nas redes sociais. Fotos, vídeos e um julgamento, que colocou a vítima no banco de réu, entalaram nossas goelas, restando um nojo coletivo, mas gritamos: “Não existe estupro culposo”. E, por incrível que pareça, nada disso tem me surpreendido, não esperava nada diferente de um povo que, ao colocar certos representantes no poder, institucionalizou a violência, criminalizando movimentos sociais, em especial, o feminismo. Quem não se lembra dos gritos mandando a presidenta Dilma “tomar no...”? Ou dos adesivos para carros, sexualmente ofensivos, vendidos na internet? Já esperava o aumento do feminicídio, do machismo, de mortes por armas de fogo e, o pior, já esperava também um comportamento do judiciário no caso de Mariana Ferrer. Não é novidade que a justiça neste país sempre teve lado e preço, só que antes era algo mais velado, agora está escancarado. Para ilustrar isso, vale uma referência do livro “Boca do Inferno”, de Ana Miranda, que leio esta semana, homens de cabedal “terão suas mentiras para provar que estavam em algum lugar à hora do crime. Têm seus amigos poderosos na Corte e se nada pudermos provar, serão logo perdoados e soltos. Como sempre. Conheces muito bem nossa justiça.” Apesar de hoje vivermos em um país republicano, séculos depois ainda não resolvemos nossos problemas mais graves do período colonial, o estupro é só um deles. Por conta disso, alguns estarrecimentos nas redes não me comovem, muito pelo contrário, me enojam, pois avisos não faltaram, preferiram acreditar em fake News e aderir ao negacionismo científico. Agora não faltarão consequências, pois “quem planta, colhe”, já dizia minha mãe. O fato é que não nos perdoam por ser hoje maioria nas universidades públicas, não nos perdoam quando pensamos, escrevemos, denunciamos e somos quem somos. Não nos perdoam quando chefiamos escolas, hospitais, repartições públicas. Não nos perdoam por não aceitar cantadas e dizer não. Culpam nossas saias, nossos vestidos e batons vermelhos, culpam-nos até por nosso sorriso. Fingem se compadecer de nosso sangue que escorre quando somos arrastadas em vias públicas, esfaqueadas, baleadas, pois ainda nos querem santas, imaculadas e, obviamente, caladas. O mais triste é saber de mulheres que defendem os tais “cidadãos” que reforçam o machismo e que legislam sobre nossos corpos. Abrir a perna, ou morrer? Morra, desgraçada! Uma a menos. Retorno à Ana Miranda: “Uma mulher honrada não deve ir à rua a não ser para seu batismo, casamento e enterro”. Perceptível a semelhança entre o Brasil de hoje e a colônia portuguesa do século XVII, mas há uma grande e fundamental diferença: vamos às ruas sim, vamos aonde quisermos ir, e vamos gritar, porque não aceitamos mais intimidações. Domingo, conversando sobre política com uma amiga, ela afirmou que o prefeito, candidato à reeleição, perderia pontos nas próximas pesquisas. Eu discordei dela e disse que aconteceria exatamente o contrário, que ele subiria. Lógica simples: a culpa é da mulher, sempre, esse é o raciocínio de grande parcela de brasileiros. Este país, que nasceu do estupro de ideias, culturas e mulheres, mantém-se em todos os lugares, por isso ainda somos objetificadas, até quando? Apesar de alguns retrocessos, já temos um caminho a percorrer, um deles é elegendo mais mulheres que nos representem. Além disso, faz-se necessário escancarar a hipocrisia que tanto nos incomoda, em especial quando vemos postagens de pessoas que, na teoria são contra o estupro, mas atrás de mesas têm usado o poder para fazer valer um instinto animal. Já nos reduziram a bruxas, já nos criminalizaram como Medusas, mas como tão bem disse Rita Lee: “Só quem já morreu na fogueira Sabe o que é ser carvão”, resistiremos.

quinta-feira, 15 de outubro de 2020

Nada a comemorar.

    Mais um dia 15 de outubro e, antes mesmo dele chegar, já via postagens nas redes sociais enaltecendo a profissão de professor. Há algumas semanas, no entanto, esse profissional era tachado de vagabundo por não querer trabalhar e, há alguns anos, era menosprezado e ameaçado, um doutrinador. De doutrinador a vagabundo, alguns insistem ainda em santificá-lo. Cansa, gente! Não que eu não queira ser parabenizada, todos nós gostamos de um mimo, mas não tem sido fácil e não vou, como dizia minha mãe, “colocar panos quentes”. 
    A situação do professor é muito parecida com a de uma mulher vítima de violência, apanha, apanha e apanha, depois aceita o parceiro com o buquê de flores no dia do aniversário. Confesso: tem me faltado romantismo. Mil desculpas, queridos companheiros e queridas companheiras de trabalho, mas também acho uma chatice essas postagens apelativas que reforçam que nossa profissão é a mais importante do planeta. Não, não é. Hoje talvez seja a de ambientalista. Daí vem você com a historinha: “mas quem ensina o ambientalista?” Menos, ambientalistas ensinam ambientalistas, engenheiros ensinam engenheiros. Sendo bem sincera, só a de alfabetizador ensina todo mundo. Simples. Na verdade, não existe uma profissão mais importante que outra, pois ninguém ensina sozinho. Ser professor é um trabalho em equipe, interdisciplinar, precisa ir além da sala de aula e envolver a família e a sociedade. Caso contrário, é um fracasso. Não se iludam, ser professor é um estado, não caiam na armadilha da meritocracia, não aceitem um altar, afinal, assumam a sala de aula. Quando tentam valorar o professor, ora o coisificam, ora o santificam e, por isso, a profissão e o profissional de sala de aula (não o de educação) não é levado a sério. 
     Uma grande maioria das pessoas acredita que professor vive de ar e de amor. Um dia, na saída de um restaurante, um conhecido me falou que, na próxima reencarnação, seria professor, para se aposentar mais cedo e trabalhar menos. Tive vontade de avançar no pescoço da criatura, mas me contive e nem me lembro do que falei, nessas horas perco o filtro. E se antes da pandemia já havia, nas redes sociais, muitos especialistas em linguística, cientistas gabaritados e juízes, de beca e martelo na mão, além de escritores, obviamente, neste período de quase retorno, a situação se agrava, porque pais e mães descobriram, em casa, tendo que acompanhar seus filhos nas duras aulas on-line, que ser professor e professora não é para qualquer um. Descobriram que nem filhos e filhas não são santos, muito menos seus professores e professoras. Sentem na pele as muitas dificuldades que envolvem a educação em um país que só lhe dá a devida atenção em período eleitoral. Por isso que hoje como não posso andar tranquilamente por aí, não vou ter vergonha de ser feliz e, como professora e educadora há muitos anos na luta, permanecerei consciente de que rosas a gente planta e respeito se conquista. 
     Enfim, no bairro em que moro há umas dez igrejas e apenas uma escola. Há lojas de tudo, mas nenhuma livraria. Este é o Brasil que acredita em milagres, não acredita na educação, sonha em ganhar na trimania, ou na megasena, ir para a Disney assistir ao falso Mickey Mouse. Podem me chamar de amarga, sem problemas. Um país laico, em que um único deus está acima de todos está fadado à miséria educacional. Não temos o que comemorar.

terça-feira, 22 de setembro de 2020

Teatro do cotidiano

Que o homem gosta de espetáculo, isso não é novidade. Parece, às vezes, que nada mudou – da Grécia Antiga ao século XXI ainda acontecem fatos tão escabrosos quanto a luta de gladiadores: luta de MMA e farra do boi são alguns exemplos do quanto o indivíduo aprecia o sofrimento do outro. Há algumas semanas, a caminho de casa, eu e meu marido presenciamos uma cena digna de uma tragicomédia: um homem ameaçava se jogar de um edifício. Fiquei, a princípio, assustada, sem certezas. Deduzi o possível fato ao ver carros da PM, ambulâncias do Bombeiro, pessoas amontoadas, frente do prédio isolada com aquela faixa amarela, e um homem na sacada do 4º andar de um hotel. Alguns, como nós, passaram e rumaram para suas casas; outros assistiram à cena, felizes com o espetáculo gratuito; outros ainda torceram – talvez uma estratégia – para que o infeliz se jogasse. Meu marido não acreditava na façanha, dizia ser o prédio muito baixo, afinal, quem quer se jogar atira-se do 8º andar pra cima. Como dizem, tragédia pouca é bobagem. Depois de uma semana, soubemos que ele, um candidato a suicídio, não se jogou, mas comprovou-se a suspeita. Segundo um barbeiro que presenciou a cena, alguns telespectadores berravam da rua: “Se joga, corno. Se joga!”. Isso me fez lembrar daquelas cenas de filmes em que o imperador romano levantava o dedo sinalizando a vida ou a morte de um gladiador na arena. Poucas às vezes o povo escolhia a vida. Povo que é povo gosta de desgraça alheia. Adora um espetáculo. Bom espetáculo para os desocupados de plantão presenciar a morte de alguém; bom alimento também para os invejosos e covardes que não conseguem dar cabo de suas vidas medíocres, pois lhes falta coragem, alimentam-se, no entanto, da coragem do outro. Esses vivem infelizes, mais mortos do que vivos e, por isso, gostam da desgraça alheia. Talvez eu esteja sendo cruel. Não gostaria de julgar certas pessoas, apesar de já estar fazendo isso, mas celebrar a tragédia de um outro ser humano é horrível demais. Talvez porque tive, na família, dois suicídios: dois primos depressivos que foram corajosos dando fim em suas vidas. Um deles era um garoto de 28 anos, universitário, alegre, responsável, amigo, um bom filho. Deixou a mãe em luto eterno. Esse sofrimento, essa perda não é prêmio, é penalização. É uma prisão manter-se vivo, convivendo com a morte de outro ser, imagine de um filho. Logo, o suicídio é contraditório. Não conheço nenhuma outra atitude mais paradoxal do que se matar. Quem se mata tem coragem para a morte, mas medo para a vida e quem gosta de assistir à morte, é possível que não goste de assistir à vida. Sinceramente, meus queridos amigos, apesar de a vida ter seus finais às vezes infelizes, assim como nas novelas e nos romances, bom mesmo é presenciar a felicidade, mesmo que passageira. Bom seria se essas cenas ficassem nos palcos ou nas telas de novelas, ou ainda nas páginas de um romance qualquer. Melhor seria que na arte, que imita a vida, os seres humanos só morressem velhinhos sim, por que não? Julho/2012 (Florianópolis: Editora Insular, 2014)

domingo, 20 de setembro de 2020

Sobre Marias

 



Eu e Fátima Teles fomos convidadas para uma live do "Coletivo Mulheres que Escrevem", promovida, pela amiga e escritora em comum,  Ana Laurindo. Lá, trocamos Marias. Ela leu um trecho de seu livro "Lições de Maria", já eu li um de meus poemas do livro "De Choros e Velas". Marias ficcionais juntaram-se a outras Marias e filhas de Maria. Eu, do lado de cá, do sul do país, apoiada em Anita Garibaldi  e Antonieta de Barros, ela, do lado de lá, do nordeste, abraçada a Maria Tomásia, Maria Bonita e Maria Firmina dos Reis. Trocamos endereços e livros e nos reconhecemos em uma luta mais que feminina.

Moradora de Brejo Santo, Ceará, Fátima Teles é professora, assistente social, escritora e mestranda em  Políticas Públicas. Publicou também "Alumbramento", "A Cidade que  veio das Àguas" e "Brejo Santo: Revisitando o passado e construindo o presente" e hoje possui um canal no youtube em que apresenta e lê outros escritores, além de textos de sua autoria. Ler "Lições de Maria" (Fortaleza: Premius Editora, 2019) foi um acalanto. É uma leitura leve e necessária para antes, durante e após pandemia, afinal, no país inteiro, têm-se mantidos os casos de violência contra a mulher. 

Nove Marias empoderam a Maria professora que ensina a mulher a redescobrir-se. Enxerguei-me naquela Maria que, ao despertar, encontra força, espiritualidade, sabedoria, liberdade e aprende, com o silêncio e o tempo, a desapegar, não só de objetos, mas de pessoas, afinal, "ninguém é de ninguém". No livro, há Marias que se fragmentam para se consolidarem.  E Maria torna-se sincera e ela mesma, quando consegue discernir ilusão e realidade, mentira, falsidade e verdade. Passa a viver atenta e caminha sem olhar para trás. 

Como "tudo vale a pena quando a alma não é pequena", a Maria, da Fátima, de muitos sobrenomes e que está em cada uma de nós, é a construção de uma mulher que se  empodera, que chora com Clarice, no entanto, merece viver e amar como outra qualquer do planeta.  Com uma linguagem figurada e leve,  o feminismo perpassa, diria que até disfarçado na capa dura de tom lilás, pela luta que a mulher ainda tem que travar, primeiro com ela mesma, depois com o outro. Respinga, nas entrelinhas, um "se eu fosse eu", de Clarice Lispector, um "se", no livro, que  só se descobre lendo, porque "de boas intenções o inferno está cheio", não é mesmo, Maria de Fátima Araújo Teles?


São José da Terra Firme, 20 de setembro de 2020. 



sexta-feira, 18 de setembro de 2020

Eu, uma mandriona

 Realmente, eu devo ser uma pessoa muito preguiçosa, porque alguém que escolhe ser professor só pode ser muiiiiiiito preguiçoso, não é mesmo? Já ouvia que ser professor não era lá uma profissão muito valorizada, além disso, como estudante de escola e faculdade públicas, sabia que a luta era grande para se tentar valorizar o que o país pouco dava valor: a educação. Foi preguiça ler e escrever, por que não fiz algo braçal? 

Realmente, eu devo ser muito preguiçosa, porque, ainda no início da graduação, comecei a enfrentar uma sala de aula repleta de alunos. No primeiro contrato da prefeitura municipal de Florianópolis, saía do centro para dar aula na Escola Batista Pereira no Ribeirão da Ilha, logo depois, me inscrevi para professora substituta para a rede estadual. Como era jovem e com pouca experiência, só consegui aula de Inglês no Zulma Becker. Para Português havia muitos candidatos para poucas vagas.  Nem almoçava, pegava o busão da UFSC, descia na prainha, pegava outro busão para Santo Amaro da Imperatriz, quase sempre abarrotado de gente. Chegava na escola e comia um lanche que as merendeiras guardavam pra mim. Putz. Quanta preguiça! Por que não levava meu almoço?

Não parei mais, realmente, coisa de gente preguiçosa, por que não mudou de profissão? E só não foram muitas as escolas públicas, porque me efetivei cedo: Nereu Ramos, Ivo Silveira, Francisco Tolentino. Pouco fui professora "acetansa" no estado, por que só preguiçoso mesmo para se sujeitar a não ter quase direito nenhum, né? Ah! Preguiçoso e tanso. Ser professor efetivo também é sinal de preguiça, sabe como é, funcionário público que, segundo um tal ministro, é tudo parasita. E quando se filia a um sindicato então, hein! Péssima combinação!

E como todo preguiçoso gosta de trabalho manso e fácil,  paralelamente ao estado, ocupava o tempo restante na rede privada. E cá entre nós, todo professor é burro, então, precisava estudar, estudar e estudar. Fui fazer mestrado, doutorado e, detalhe, em sala de aula e grávida. Como? Ainda me perguntam? Professores não trabalham, gente, professoras muito menos. Simples assim. Por que elas não ficam em casa cuidando dos filhos e dos maridos? Bando de preguiçosas! E  essa história de preparar e fazer plano de aula, trabalhar em dois e três lugares para complementar o salário é conversa de esquerdista, sindicalista, comunista,  por que não trabalham, as mulheres, por amor à profissão? 

Realmente, sou muito preguiçosa, com três meses de férias durante esses anos todos, por que ainda não fui trabalhar, de graça pra algum político por puro patriotismo? Hoje, quem sabe,  eu seria uma assessora de um desses deputados aí que dão o sangue pelo "brazil", ou poderia, nas últimas eleições, ter me filiado a certo partido repleto de gente trabalhadeira e bem intencionada, que odeia mamadeira de piroca. Culpa de Freud e de um certo partido que governou para gente preguiçosa, tudo culpa de professor de humanas que não ensina a pescar.  

Tem que ser muito preguiçosa, tansa e burra, né? Por que diabos não dei uma de louca e me aposentei aos 33 anos com salário integral? 

Vai trabalhar, vagabunda. Lembra: nada está tão ruim que não possa piorar. 

São José da Terra Firme, 18 de setembro de 2020.

terça-feira, 11 de agosto de 2020

Rir para não chorar, um clichê, fazer o quê?

 

De repente me vejo, há quase cinco meses, em uma sala de aula na minha própria casa: um quadro branco, canetas coloridas, um apagador, um computador e três aplicativos para gravação e edição de vídeo. Perco a noção de vida  privada e o tempo relativiza-se ainda mais.

Ao comparar a minha primeira videoaula à atual, percebo uma considerável evolução: título, legenda e o fato de não precisar mais gravar tantas vezes um mesmo conteúdo. Segurança e conforto. Sinto-me quase uma profissional da área, já penso até em mudar de profissão, mas temo a concorrência (hehehehehe). Acostumo-me ao novo espaço improvisado, diverso e solitário. Não tenho mais expectativa pela chegada da sexta-feira, tampouco a segunda me causa ansiedade, pois nenhum sinal me avisa o início ou o fim das aulas que, na verdade, como sou prevenida já estão programadas. Caso fique doente, apesar de me manter afastada do convívio social, já tenho um mês pronto , sem aula meus alunos não ficam. 

E eu, que nunca fui saudosista, sinto saudades de ter horário para acordar, de me arrumar e ir para o trabalho, afinal, nos últimos tempos, da cintura para baixo pouco preciso me preocupar, dou aulas de chinelos e me sinto em casa, mesmo parcialmente fora dela. Sinto saudades dos recreios na sala dos professores, daquele tempo curto de 15 minutos que nos faz respirar para um café, um papo e um banheiro, e até das discussões que, às vezes, rolam, além de, lógico, das combinações do tipo: “o que faremos neste final de semana?” Hoje vale um: “Fica em casa, seu mané”. Sem samba. Sem encontro para um chopinho. Sem cinema. Sem sarau e sem roda de choro. Putz. Não aguento mais minha tevê. O Netflix, tornou-se um enlatado, resultado: assinei a Amazon Prime e já recorri até ao aposentado DVD. A ansiedade tem sido minha melhor amiga, roer unhas voltou a ser um hábito cotidiano e o vidro de rolhas de vinho enche rapidamente. A casa já precisa de uma nova faxina, só que estou achando tudo meio sem graça. Olho os dias lindos e só penso em quando vou poder sair, sentar em um café para escrever, pois minha inspiração está nas ruas, nos passos que dou, nas pessoas que encontro, na vida lá fora. Conversas e reuniões pelo meet com vozes falhando, milhares de lives dia e noite, e-mails, recados no whats, no face, no insta, bah!! Tudo isso cansa. Cansa o contato frio com os alunos no classroom, até mesmo as postagens no google drive. E a falta de contato, do olho no olho, do toque, das vezes que tento fazer meus alunos rirem para a aula ficar menos chata, e até de quando canto para eles. Sinto saudades de momentos bons, e até dos ruins: “Profe, é pra copiar?” Afffff!

O fato é que a quarentena se prolonga, a curva parece nunca chegar ao fim, e o que era para ser um mês mantém-se e talvez ultrapasse o ano. Talvez passemos a virada em nossos quadrados, cantando: “adeus incerto ano”. Já esgotei todas as minhas listas de filmes, fechei alguns livros densos demais, outros eu li e reli. A esponja do meu sofá afunda  e confesso: ando até assistindo ao Vale a pena ver de novo: "Êta mundo bom".  E os feriados nem me fazem falta!  Também acho que não sei mais o caminho do trabalho, nem sei mais meu horário de aula. Saudade dos sábados no 'Qualé Mané", mas o "Qualé Mané" fechou e só no que penso é onde irei quando tudo acabar? Às vezes sinto que sou uma prisioneira à  espera da assinatura do juiz para sair por aí, distribuindo máscaras colecionadas ao longo de 2020, um ano histórico, ora pela pandemia, ora pelo desgoverno que só o que sabe fazer é desgovernar: acabar com direitos dos cidadãos, contribuir para o aumento da desigualdade, empoderar violências mil e, o pior, demonstrar um descaso imenso com o número de mortos que já passa de 100 mil seres humanos. E “pracabá” ouvimos um: “tem que tocar a vida”.

Ontem, gente querida, adormeci com este texto parcialmente pronto em minha cabeça e pensei em compartilhar com vocês para diminuir nosso distanciamento afinal, as palavras são acalanto e cura. Sabem o que me atormenta? As festas que perdi (por preguiça) quando podia sair, isso que eu confirmo presença antes de ser convidada (nas que vou, né?), pois então, faço uma "promessa", se escapar dessa pandemia, irei a todas as festas que me convidarem, nem que tenha que ir a três em um único dia. Também procurarei fazer muiiiiitas festas e dançar muiiiiito, então comportem-se em casa para que possamos nos encontrar em breve. Por ora, como não tenho lágrimas de crocodilo, fico por aqui rindo para não chorar.

 

São José, 11 de agosto de 2020.

 

quinta-feira, 7 de maio de 2020

Sobre fazer aniversário



O que espero da vida ou que a vida espera de mim?  Nunca soube esperar, não é à toa que nasci de oito meses, por isso não penso nisso.  Vou vivendo, com poucas expectativas pra não enlouquecer. “Compositor de destinos,/Tambor de todos os ritmos”, mais um tempo se vai e outro se apresenta, fazer aniversário é pros fortes. Não há acordo, Caetano, infelizmente.
De família humilde e numerosa, os presentes sempre foram poucos, e houve uma época em que aguardava por eles, como era bom ser lembrada. Eles eram raros e valiosos carregavam afeto e luta. Os presentes, no entanto, adquiriram uma proporção consumista demais, perderam o valor que tinham, e frente a tanta data e comemoração que, muitas vezes, nada significam, tornaram-se “obrigação”, é como aquele: “tenho que comprar algo pra fulano, é seu níver”. Ressignifiquei o presente e ele se desmaterializou, estar rodeada de pessoas verdadeiras ao meu lado, com quem eu possa, como disse Tom Jobim, multiplicar, pois, "Pra que dividir sem raciocinar"? é meu maior presente, lembrando que estar ao lado de não é, necessariamente, estar próximo. 
Não há dia pra presentear alguém amado, quem me conhece sabe que gosto de dar presente sem motivo. Me lembrei da pessoa vou lá e, se possível, faço da vida uma aula de matemática, nunca de contabilidade, compro e presenteio. Os melhores presentes estão mais no ato em si, mais na lembrança do que no objeto. Meu aniversário não representa só um ano a mais de vida, representa um dia a mais com gente querida. E por isso tudo não consigo me desfazer dos presentes que ganhei durante minha vida. Bilhetes de alunos, cartões do namorado que se tornou amante e marido, cartinhas dos filhos quando crianças, enfim, lembranças que não têm valor comercial, até porque afeto não se comercializa.
Comemoramos a vida, mas com o tempo, passamos a conviver com a morte que vai se aproximando cada vez mais. Já perdi muitos amores, mas nenhuma morte doeu mais que a de meu irmão, é uma dor constante. Em 2018, comemoramos meu aniversário em uma casa de samba (foto), dançamos a noite inteira. Ele sambava puladinho igual seu Lidinho. Era quase um pai pra mim, reforçou meu amor ao samba, foi quem me levou pra desfilar na Copa Lord, foi quem me levou pra minha primeira viagem de avião, foi quem me incentivou a estudar inglês, era quem me encantava pelo amor à liberdade e era quem penteava meus longos cabelos crespos e embaraçados quando criança.  Era desprovido de ambição, tinha meia dúzia de roupas e o que tinha não era dele. No meu aniversário de 2019, por causa de política, estava chateado comigo, e eu com ele e não tivemos mais a oportunidade de nos parabenizar. Nos últimos tempos, mortes têm sido constantes, e algumas delas antecederam meu aniversário e, por isso, é impossível comemorá-lo sabendo que o luto paira no ar, assim como paira no ar o medo pelo país que se desenha, imerso em um descaso com o idoso que, há alguns dias, aos sessenta anos, se tornou descartável. E sessenta está logo ali...  
Retornando ao questionamento inicial, só o que espero da vida é não chegar à velhice como Flávio Migliaccio, pois quero olhar pra trás e pensar no clichê: fiz o melhor que poderia ter feito.  É assustador imaginar que alguém com mais de oito décadas de vida antecipe sua morte, é, porém, compreensível pelo momento de intolerância em que vivemos. Flávio Migliaccio dizia que, quando se apaixonava pelo personagem, queria representá-lo pelo resto da vida. Era mais fácil ser personagem, né, Flávio? Não é fácil ter, mas é muito mais difícil ser.
Ontem eu queria ter comemorado meu aniversário em uma casa de samba, queria estar com gente querida e sambar muito com aquelas pessoas que estiveram comigo em 2018, queria que a Tânia cantasse Rosa de Pixinguinha pra mim, mas o tempo não volta e fiquei feliz com os beijos e abraços virtuais, com as muitas mensagens que recebi e por ter meu marido e meu filho do meu lado. Fiquei no meu canto. Claro que rolou um samba e também fiz um bolo de aniversário, algo que há anos não fazia ( não dispenso um bolinho) e cantamos parabéns pelo whats com mais três amigas queridas. Foi diferente. Foi bom. Me senti acolhida.
Hoje o dia amanheceu triste e frio, também acordei mais velha e mais preocupada com as estatísticas quanto ao Covid-19, mas a poesia sempre me acalanta e nada como alguns versos de Vinícius de Moraes: "E eu te direi: amiga minha, esquece.../Que grande é este amor meu de criatura/Que vê envelhecer e não envelhece".
É isso, gente querida, o amor não envelhece, tampouco morre. E quanto ao que a vida espera de mim, sei lá. Deixo que ela me leve, né, Zeca?  Grande beijo e obrigada pelo afeto.
São José, 07 de maio de 2020.

quinta-feira, 16 de abril de 2020

Quebra-cabeça



Um mês confinada em casa. Sem finais de semana com amigos, música e poesia. Sem cair no samba, algo que fazia ao menos uma vez por mês. Comprei um quebra-cabeça de mil peças da Monalisa, uns quatro livros e assim tenho passado meus dias. Durante a lenta passagem do tempo, preocupo-me, como a maioria dos trabalhadores, se haverá emprego, se o salário vai chegar, se conseguirei pagar a escola do filho, se voltarei a ver meus alunos e alunas ainda este ano, se minhas aulas digitais estão razoáveis e blá, blá, blá. Não tem sido fácil, agora mais do que nunca, me reinventar atrás de uma máquina, um acalanto é a troca textos e mensagens de amigos educadores que ora se opõem à tentativa de se ensinar fora de uma sala de aula, ora curtem virar youtubers e digitais influencers. E isso me tira o sono, porque não é de hoje que penso na educação. Sou uma questionadora de como se dá o ensino e nunca me contentei com a zona de conforto e, como eterno aprendiz, gosto de desafios. Não é à toa que sempre me disseram: Rô, não inventa moda. Sou teimosa.
Ensinar neste país é sempre uma tentativa, já sabemos desde sempre que aqui a educação é excludente. Então se hoje em tempos de pandemia falta computador e internet para que alguns brasileiros possam ter acesso ao ensino, há séculos faltam-lhes livros, professores e escolas. Ou seria isso novidade agora em tempos de corona vírus?  Desigualdade e meritocracia há muito dificultam uma educação de qualidade, e até mesmo com iniciativas como as cotas, por exemplo, permanecem as injustiças, afinal, não há uma uniformidade no processo educacional, e o encerramos da pior forma possível, peneirando através de um vestibular quem vai ou não frequentar um “bom” curso superior (ou ainda quem pode ou não pagar). Um aluno de família de baixa renda que estuda no IFSC não tem acesso à mesma educação que um aluno nas mesmas condições que cursa, por exemplo, uma escola estadual em São Carlos. Ambos terão direito à mesma cota. A desigualdade é muito cruel e histórica e não há interesse, em um país capitalista, de mudar essa situação de desequilíbrio, afinal, ele o produz. Quem “bem” formado abaixará a cabeça, aceitará a carteira de trabalho verde e amarela, se sujeitará a horas-extras sem receber, aceitará votar no candidato do empregador, quem?
Quando penso nos desafios, como professora que sempre esteve em salas de aula de colégios públicos e privados, me questiono sobre a autonomia necessária para que a educação aconteça. Tal autonomia não se reduz ao professor, mas ao aluno também. Acredito há tempos que a educação só acontece quando há, realmente, uma cumplicidade entre os envolvidos e autonomia. Educação não pode produzir marionetes, tampouco escravos, nem de um lado, nem de outro. Nossos alunos e alunas precisam buscar o conhecimento e a aprendizagem precisa ser algo constante, independente de se estar ou não em um espaço quadrado, perfilado e não raro as vezes, opressor. Temos alunos que não sabem frequentar uma biblioteca, sequer sabem procurar um capítulo em um sumário. Temos jovens que acreditam que escrever é fazer ctrlc ctrlv.  Alguns de nós, professores e professoras, insistimos em um ensino quantitativo, seguimos o programa, aplicamos provas que não avaliam quase nada, logo, fazemos de conta que ensinamos, assim como alguns fazem de conta que medicam, que administram, que governam.  E não há grandes problemas com isso, porque alguns desistirão no caminho, mas o candidato a alguma profissão poderá fazer curso superior privado ou não, a distância ou não e se tornará mais um com diploma de 3º grau completo a endossar as estatísticas. Outros poucos, com acesso a uma educação de “excelência”, que se dará muito mais fora das grades e portões da escola, ascenderão ao “paraíso”, de onde, na verdade, nunca saíram. Não desviemos o foco agora, queridos companheiros e companheiras de trabalho, o problema da educação – ainda – não é o acesso às redes, o problema é estrutural e vem de séculos: a falta de interesse político em resolvê-lo,  porque não é nada lucrativo, só a produção de miséria é lucrativa para quem pretende se manter no poder e fazer parte daquela minoria abastada e beneficiada pelo sistema.
Não há escolas sem alunos e sem professores. É fato. Não seremos substituídos por máquinas. Não tenhamos medo de nos aventurar pelas redes, gravando vídeos, editando-os, procurando levar um pouco da sala de aula real a nossos alunos, eles merecem nosso respeito e dignidade. Eles precisam de um norte. Alguns deles moram em casas com acesso a tudo, inclusive a livros, a alguns resta um barraco sem água, ter acesso a um celular ou computador, mesmo que em uma sala que é quarto e cozinha, é ainda melhor do que ficar olhando para o teto que  desaba sobre suas cabeças. Definitivamente, nosso problema, em tempos de covid-19, é o acesso, desde sempre, à vida. Se os livros nunca chegaram, que de repente cheguem redes capazes de diminuir não só a solidão, mas a busca pelo conhecimento.
 Na minha estante, uma caixa com a tela da Monalisa me olha com aquele seu olhar andrógeno e desconfiado. Na mesa, as peças acenam para que eu as coloque uma a uma em seus lugares. Neste momento, a educação me parece um quebra-cabeça de mil peças, não está fácil de encaixá-las, talvez consiga, talvez não, mas tentarei.

sábado, 28 de março de 2020

Ressignificando o direito de ir e vir.



O dia parece ter mais de 24h e a semana, mais de sete dias. Anteontem, ontem e hoje eu acordei e limpei a casa. Organizei roupas e calçados, louças, livros, bijous. Parecem dias normais, o sol me acena lá fora,  mas cai a ficha: tenho que ficar em casa. Sobra tempo também para (re)ler, meditar e me preocupar  com o amanhã, afinal, não faz sentido ter uma casa grande e vazia. Gosto de ocupar todos os cômodos, de preenchê-la com música, literatura e amigos e familiares. Meus livros não param na estante, muito menos eu, em casa.  Em tempos de coronavírus, relembro-me de Drummond: Cantaremos o medo, que esteriliza os abraços.
Nunca imaginei que passaria por algo parecido: ficar em quarentena. Quarentena para mim era resguardo, aquele período pós-parto que eu, só para variar, não obedeci. No Mestrado, grávida de Marianne, voltei à UFSC em menos de um mês, no Doutorado, grávida de Vinícius, idem.  Sou desobediente - confesso. Ordem para não sair de casa sempre foi uma tentação, bem diferente de ficar por opção.  Proibido proibir para mim é castigo, e como sou sociável (até em excesso), sou daquelas que sofre por não poder cumprimentar meus amigos com beijos e abraços apertados; sofre por não poder sair, por não poder sentar em um café para escrever, ou em uma mesa para ouvir um bom samba, rir e dançar muito (eu danço até sentada). Lima Barreto, em seu Diário,  inveja a liberdade dos navios:  Eu estava preso por entre as grades e sempre sonhei ir por aí afora, ver terras, coisas e gentes. É essa sensação. Come io sono un può italiana, sinto a dor de quem por lá está, impedido de se despedir e de velar entes queridos, por isso fico em casa. Sou invadida pelo medo. Medo pelo outro, por nossa família, por quem não conheço. Medo do que me aguarda, da quarentena que pode ultrapassar meses. Medo da distância que se agigantou entre mim e minha filha. Medo por aqueles que, sem casa para limpar e oganizar, ainda são privados de sorrisos e amores.  E por medo, compaixão, empatia e responsabilidade desobedeço meus instintos: fico em casa.
Sabe aquele vestido novo com etiqueta? Pode nunca sair do armário. E aquele batom novo?Será esquecido na gaveta. Não há nada pior, entretanto, que perder alguém amado, por isso eu fico em casa. Ressignifico o ficar em casa, agora não mais como uma proibição, como nos tempos de adolescência, mas como luta, e eu nunca fujo de uma boa luta. E sair de casa passa até a me atormentar, pois penso na fala do "presidente" que diz ser apenas uma gripezinha e que morrerão pessoas, qual o problema? São mais de 15000 mortes no mundo e quase 100 no Brasil, e o coronavírius aproxima-se: uma conhecida está internada, entubada, e nem passou dos 60 anos, não faz parte do grupo de risco. Medo e insegurança me deixam sem saber qual a pior doença a ser combatida no Brasil, se o Covid-19 ou a ignorância e o egoísmo de uma grande parcela de brasileiros encorajada por seu representante a sair de casa.  Fato é que com o atual "presidente" todo cidadão brasileiro passa a ser do grupo de risco, tenha a idade que tiver.
Aqui em casa as portas sempre estarão abertas aos queridos que agora passarão a tirar os calçados. Sem abraços. Sem beijos. Haverá um café, um almoço, uma roda de choro, declamação de poesia, troca de livros e, possivelmente, um vidro de álcool gel. Isso quando todos puderem sair de casa. A melhor prevenção será, no entanto, o respeito à vida, sempre. A economia se recupera, vidas não.  A vida alerta para o quão a morte é seu outro lado da moeda, o quão frágil é o ser humano e que um vírus pode vencer batalhas apesar de todo avanço tecnológico e cientifico. Um médico italiano disse que  não parece ter feito o máximo. E é essa sensação de impotência que amedronta. Voltando ao escritor pré-modernista: Não há dinheiro que evite a morte, quando ela tenha de vir. Essa é uma certeza, é certo também, no entanto, que a ciência está a nossa favor, assim, talvez não possamos evitar a morte, mas podemos adiá-la, ela virá, só não pode ser fruto da incompetência "humana". Quanto ao medo, cito por aqui um verso de um de meus poemas do livro o amor não cabe no peito: Medo é pássaro sem asas.

São José da Terra Firme, 28 de março de 2020.

domingo, 8 de março de 2020

Quero um país que não está no retrato.

Quero um país que não está no retrato.

Não sou uma pessoa que vive do passado. Estou aqui e agora, e o que passo me serve de referência. Sou da paz, mas não fujo da guerra - se necessária. Há alguns anos em uma renomada escola de Florianópolis, enquanto os professores tinham uma hora aula de 50 min, a das professoras era de  60, sem direito a uma pausa para o recreio, logo, trabalhávamos mais e recebíamos menos. Quando soube, questionei o diretor da escola que me disse: "Pô, aumentamos o número de aulas de vocês e ainda reclamam?" Reclamei. Resmunguei. Ameacei. Disse-lhe que iria à Justiça do Trabalho e perguntei como tinha coragem de fazer aquilo com três mulheres. Ele arregalou os olhos e se calou. Vencemos. 
O amor cega, e a paixão altera nosso comportamento, e isso acontece também no trabalho. Quando amamos o que fazemos nos deixamos levar pela emoção, mas é necessário manter a razão e jamais esquecer que onde há uma relação de poder, há uma possível forma de exploração, esta obviamente, dos  "mais fracos". Já me disseram para virar a página. Já me pediram para mudar de foco, de tema. Já fui contestada,  sem problemas. E já fui desrespeitada. Porque para algumas pessoas à mulher cabe calar e aceitar,  e escancarar os muitos abusos que ainda sofremo é mimimi. Não posso, nem vou me calar.  Quiçá um dia não precisemos mais exigir o que nos é de direito. Enquanto isso não acontece, serei chata, redundante, insuportavelmente feminista.  
Pouco tenho assistido à tevê, essa semana, no entanto, vi uma cena de arrepiar o cabelo de qualquer cidadão civilizado: uma mulher sendo arrastada e espancada pelo marido. Não divulgaram o nome do agressor, mas não se cansam de divulgar nomes de mulheres vítimas de seus ex. Nomes femininos ilustram páginas de jornais e nas redes sociais são compartilhados. Todos os dias, brasileiras (incluindo as trans) são mortas. Não há medida protetiva capaz de fazer homens parar de matar. O Brasil é um matadouro de mulheres. Não há leis que inibam homens possessivos de enxergarem que elas têm direito de escolha, e que ninguém é de ninguém, aqui vale o clichê. 
Nas últimas férias, ficamos quase um mês em Riga, na Letônia, onde tentei explicar para uma letã a importância do feminismo no Brasil. Ela não compreendia. Pensei que fosse pelo meu preguiçoso inglês. Ao  caminhar pelas ruas da capital e observar o modo como vive aquele povo, pude perceber de imediato o quão é irrelevante o feminismo por lá.  Andando por Riga, vimos mulheres no comando de trens de superfície, lá também elas são maioria no Mercado Público, lá também vemos muitos casais jovens em restaurantes com dois ou três filhos, os pais brincando com as crianças enquanto as mães olham celulares. Lá há 100% de igualdade entre homens e mulheres. É lá, não é aqui. 
Hoje é um dia de luta e todos nós deveríamos lutar por direitos à igualdade, porque esta não é só boa para as mulheres. Todos nós, independente de sexo e gênero temos direitos de escolha. Temos que desenhar, se preciso for, e calar nunca será uma solução. Logo, à mulher, no Brasil  assim como na Letônia, cabe um facão fora de sua cozinha.
Somos fruto da violência, do processo de colonização à democratização do país, não faltam agressões físicas, psicológicas e morais. O Brasil é um país de estupradores, não só de mulheres, mas de direitos de cidadãos, sejam negros,brancos ou índios e brancos, homens ou mulheres, cis ou trans. Dados não faltam: em 2019 houve um aumento de 7,3% nos casos de feminicídios no Brasil – crimes de ódio motivados pela condição de gênero e em Santa Catarina, 59 mulheres morreram. Temos muito ainda a conquistar, o corpo feminino precisa deixar de ser vinculado a objeto de desejo erótico, também precisa deixar de ser um produto de beleza, ser mulher  vai além do feminino, da sexualidade e do padrão. A luta é coletiva e não se restringe apenas à vida de mulheres, mas à de homens também, afinal, sempre que morre uma mulher, existe menos possibilidade de um homem nascer. Não há vida sem a mulher, sem o feminino. Não existe um homem sem o "x" do feminino. 
Reforço a postagem na internet de uma das últimas vítimas de feminicídio nos últimos dias: "Se o coronavírus matasse 1 pessoa a cada 2 horas, totalizando 4.476 mortes em um ano, estaríamos completamente em pânico! No Brasil, 1 mulher é morta a cada duas 2 horas, e  ninguém quer enxergar isso como uma epidemia". Hoje recebi várias mensagens meio festivas pelo dia 8 de março, mas não é, ainda, um dia de festa. Talvez para algumas de nós seja um dia feliz, para a maioria, entretanto, é só mais um dia de dor, mas o retrato há de ser outro.  

São José da Terra Firme, 8 de março de 2020.