quarta-feira, 9 de agosto de 2023

Estado de Poesia

 

Cantando Rita Lee no Espaço Cultural Wagner Segura (da esquerda para a direita em cima: Elinete, Denise de Castro; embaixo:   Gabi, eu, Ana, Patrícia e Jaqueline)

Quando jovem, sempre de fora, assistia timidamente a meus irmãos jogar vôlei. Sem habilidade para esportes coletivos, nunca era convidada a fazer parte de time algum. Não fui uma exceção. Afinal, quantas vezes ouvimos que é preciso ter dom para jogar, cantar, dançar? Quem dera, no entanto, nos deixassem fazer aquilo para o qual realmente tínhamos aptidão, ou gosto ao menos.

Muitas mães e pais acham lindo quando os filhos cantam, tocam e atuam nos dias festivos na escola. Mas os reprimem quando resolvem ser artistas. Assim, nem mesmo aqueles que têm tal "dom" são apoiados pela família.  No esporte, claro que isso não serve para o futebol masculino, pois que pais não gostariam de ter um Ronaldo no time, não é mesmo?

Família e escola amedrontam crianças e jovens, e tudo começa com as comparações. Quantos desistem de fazer algo de que têm vontade por não se acharem à altura de um irmão, primo, vizinho?  É fato que eu não tinha um bom desempenho no vôlei, mas poderia aprender. Afinal, esforço e dedicação podem superar as habilidades, não?

A escola, que deveria sempre estar preocupada com a educação de forma mais ampla possível, amplia todos esses traumas que brotam lá no seio familiar. Se os alunos e as alunas serão profissionais da música ou da dança, ou excelentes atletas, isso pouco importa; a escola deveria abrir caminhos, não os fechar. Ali a meritocracia não deveria ser bem-vinda, pois a escola é lugar para aprender com o erro e desenvolver habilidades.  

Por isso que muitas vezes não damos certo, e a infelicidade reverbera, contamina. Carregamos, ao longo dos anos, um peso de frustrações que nos impossibilitam de sonhar e, pior, acabam por nos padronizar e nos enquadrar em escalas de zero a dez. Mas nós, seres humanos, não nascemos para permanecer na mesmice; somos inquietos, queremos ampliar nossas possibilidades: rir, conviver, encontrar a felicidade que, com certeza, não está condicionada a um modelo, muito menos a um número. Se alguém não tem habilidade para ser engenheiro, isso não quer dizer que não possa somar e dividir. Se alguém não tem ginga para o samba, não quer dizer que não possa dançar. Se não tem ritmo ou é desafinado, também não quer dizer que não possa cantar, pois a voz não serve só para falar e gritar. E, como bem disse Tom Jobim, “no peito dos desafinados também bate um coração”.

Cantar no banheiro é só um começo para ssubirmos em um palco. Pegar um microfone ou dar toques em uma bola de vôlei são só alguns dos desafios para que alcancemos alguns objetivos (ou sonhos) que não estão, necessariamente, atrelados a uma profissão. Nenhum ser humano nasceu só para trabalhar. E, já que escola e família pouco atuam como agentes de democratização do aprendizado, necessitamos de espaços que se comprometam a fazer arte sem a valorar.  Preocupados em errar, deixamos de concretizar sonhos. Ao ter medo de julgamentos, deixamos de arriscar. E quem não arrisca, não vive; respira, mas não vive.

Eu sempre amei cantar, talvez por assumir a voz de outras pessoas que (en)cantavam um mundo, desentalando algo preso na garganta. Num coro da escola, no entanto, por mais que a maestrina apostasse em mim, achava minha voz de soprano muito fina. Nunca tive realmente aulas de música, pois eram tempos da famigerada Preparação para o Trabalho e, por ignorância, acreditava não cantar bem. Levei anos para ter coragem de soltar minha voz, mas voltei a cantar, como professora, em sala de aula. E não foram poucas as vezes que algum aluno me disse: “profe, o que tu faz aqui?”. Hoje me (en)canto em um espaço que me acolhe, não me julga. Lá encaro o medo do microfone, o medo do público. Lá não me preocupo com a régua. Lá, com pessoas de diferentes gerações, botamos nosso bloco na rua, abrimos ala, desconstruímos preconceitos e curamos traumas.

Não deveríamos ter medo de cantar, mas de perder a voz. Também não deveríamos ter medo de perder, só de não jogar. Não precisamos ser profissionais em tudo o que fazemos. Só do que precisamos é, como tão bem disse Chico César, “viver em estado de poesia”.