domingo, 28 de abril de 2019

O céu não é para todos.




Não. Não odiamos o Brasil, tampouco a bandeira nacional. Não. Não queremos morar em Cuba, tampouco em algum país europeu. Amamos o Brasil, mas o que é o Brasil sem o povo? E quem é o povo brasileiro? Um símbolo nacional não pode valer mais que o povo. A quem interessam os símbolos? Como exigir que crianças e jovens analfabetos funcionais cantem o hino? De que vale uma bandeira hasteada em um pátio de uma escola com o teto desabando? De que vale idealizar o verde e o amarelo da bandeira se não houver respeito ao meio ambiente e aos recursos naturais? Se cidades são inundadas por barragens que levam, além de casas, seres vivos?
No Brasil de 2019, veste-se a camisa da CBF, mas ignora-se o povo sofrido que, há séculos, tenta juntar pedaços de um país esquartejado desde a chegada dos colonizadores. No Brasil de 2019, o ódio ao diferente vence conquistas de séculos desgraçados que pensávamos haver amenizado. No Brasil de 2019, negro, mulher, gay, trans, pobres são reduzidos a pano de chão, perdem direitos civis, criminaliza-se a arte e os professores de humanas tornam-se uma ameaça. Bora fazer o povo ler, escrever e contar, desde que não questione, não é mesmo? Neste solo brasileiro, há muita lama, esgoto a céu aberto, sangue escorrendo para os bueiros: casa própria financiada desabando, água invadindo tudo, pontes caindo, projéteis perfurando corpos pretos de pretos pobres, mulheres sendo mortas por homens ensandecidos,  índios sendo massacrados, ambientalistas assassinados, sem-terras banidos de terras improdutivas. É um país em que poucos têm muita terra, outros, nenhuma. País em que pobre paga muito para ter uma vendinha no bairro, enquanto milionário não paga para navegar nos sete mares.  O sangue do brasileiro não é verde e amarelo, é vermelho, muitas vezes, anêmico, mas vermelho. Vermelho não é ameaça comunista. Nunca houve ameaça comunista, deixa de ingenuidade! A única ameaça que existe é a imperialista. O vermelho é a vida que escorre por nossos dedos, porque este país não se basta, afinal, brasão, selo, hino e bandeira nada significam se não há identificação do povo com eles. Enquanto o povo veste a camisa verde e amarela, reservas naturais são vendidas e agrotóxicos entram indiscriminadamente em nossos pratos.
Não. Não odiamos o Brasil, nem seus símbolos nacionais. Nós o amamos tanto, que damos o sangue por ele. Enquanto a morte for uma saída para cidadãos marginalizados e sem expectativa de vida, enquanto houver uma criança morrendo de fome, baleada e analfabeta, enquanto jovens negros sem oportunidades forem exterminados nas comunidades brasileiras, de nada valerão os símbolos nacionais, pois elas e eles são ou não o futuro deste país? “Lá no morro/quando morre uma criança/o comentário é geral/ dizem logo, este não vai sofrer/se libertou, se livrou do mal” Enquanto o sofrimento for um fim (ou um meio), a bandeira permanecerá vermelha, mesmo que a miopia não o faça enxergá-la banhada de sangue. Não é à toa que a árvore que simboliza o Brasil e que está quase extinção, é vermelha, não é mesmo? E agora, neste Brasil de 2019, será que até nossa carteira de trabalho será verde e amarelo? Agora compreendo por que o “céu não é para todos”.

domingo, 21 de abril de 2019

Boa páscoa!





Impossível não me lembrar da páscoa na infância. Minha mãe enchia nossas cestas com frutas e com canudos e ovos de amendoim que ela mesma fazia. Meus irmãos mais velhos faziam as pegadas de coelho no assoalho de casa e escondiam nossas cestas para que as encontrássemos pela manhã.  Em um domingo antes da páscoa, minha mãe ia à missa e trazia sempre um ramo da igreja, dizia que era bom queimá-lo em dias de trovoada.
Do hebraico, páscoa é passagem e não é só um dos feriados mais esperados do ano,  é uma data que vai além da religiosidade,  é uma data histórica e  política. Tem a ver com a história de um povo escravizado e com a ressurreição de um homem que, se tivesse nascido muitos séculos depois, seria tachado de comunista. No Brasil, seria assassinado por algum político incomodado com suas afirmações favoráveis aos direitos humanos, teria uma placa em sua homenagem arrancada e quebrada em praça pública, e esse ato, em nome dos bons costumes, seria ovacionado nas redes sociais, multiplicando-se de diferentes formas em mensagens no whatsApp. Seria só mais um bandido morto.
Gosto da ideia de ressurgir, de renascer, de procurar sempre ser um pouco melhor do que sou. Sendo mais específica, bom pensar que nós, seres humanos, podemos nos transformar em pessoas menos julgadoras, ter mais empatia e nos colocar sempre do lado de quem está pregado na cruz, à direita ou à esquerda, tudo depende da referência. Hoje, cada vez mais descrente em alguma religião, sofro com os rumos que o país toma, afinal, nasci cristã e o sentido da páscoa perde-se, como tantos outros. Deixar de acreditar na páscoa é como desacreditar na capacidade de renovação do indivíduo, insisto em acreditar em algo além de nós mesmos, em uma força da natureza que o homem não domina e não tem consciência, talvez isso seja religiosidade, mas pouco importa. Hoje se fazem necessárias as ações, estamos fartos e fartas de palavras ao vento.
Sou taurina, dizem que, por isso, sou também teimosa.  Então vou insistir em desejar-lhes uma feliz páscoa. Precisamos de renovação. Precisamos de passagem, de passos para frente. Quando o século XXI chegou e o mundo não acabou, pensamos que teríamos um mundo menos desumano e desigual,  quase vinte anos depois nos encontramos em um momento de retrocesso, não só político, mas social e humano, questionam-se fatos históricos, criminalizam-se professores e artistas, retornam movimentos de extrema direita que, em vários períodos da história, apedrejaram, queimaram, enforcaram, decapitaram, crucificaram os diferentes. Minha mãe, que amava metáforas, provérbios e ditos populares, diria que estão pegando muita gente pra cristo e a possibilidade do mundo acabar será um ato humano, deus não protagonizará essa história. Como ouvi um dia desses, deus, essa palavra tão bela, são "eus", assim prefiro sempre acreditar que deus não pune, perdoa; não julga, respeita; não odeia, ama. Deus não subordina ninguém, tampouco mulheres. Como mulher e feminista que sou, meu deus é o dos desgraçados de Castro Alves.
Enfim, o sentido da páscoa precisa ser cotidiano. Como uma pele que encrespa, resseca e se renova após queimada pelo excesso de sol, precisamos retirar esse ranço impregnado e velado durante os últimos anos. Precisamos voltar a acreditar no ser humano e em sua capacidade de respeitar a diferença, de nunca mais reforçar estereótipos. Difícil, quando se vê gente próxima defendendo a barbárie que já se instalou no país, mas é necessário não esquecer os Jesus, as Marielles, os Evaldos e tantos outros crucificados. Por ora, gente querida, hoje cabe uma apelação, que acordemos amanhã com menos ódio no coração e com menos ambição e vaidade, afinal, em uma sociedade civilizada, cacau não pode valer mais que um ser vivo. Boa páscoa!

 São José, 21 de abril de 2019.

domingo, 14 de abril de 2019

Quatro negros



Quatro pobres e negros
O que são, em meio a milhares, quatro negros?
Quatro a mais
Quatro a menos
Negros são negros
Filhos da noite
Descendentes de troncos e açoites
São negros
São apenas quatro negros
Com cara de pobre
Com cara de mala
Com cara de refúgio
São apenas quatro negros
De alma suja
De sangue encardido
De cabelo ruim
De beiço largo
De corpo avantajado
São apenas quatro negros
Com cara de cotista
Órfãos de justiça 
O que são, em meio a milhares, quatro negros?
Um a mais
Um a menos
Não faz a diferença
São apenas quatro negros
Sem público
Sem privado
Filhos do nada
Sem deuses dos desgraçados
Sem voz
Sem vez
São apenas quatro negros
De história velada
De direitos negados
De vidas sacrificadas
São apenas quatro negros
Parentes de Zumbi
Restos da escravidão
São apenas quatro
A se multiplicar em PG
São a utópica liberdade
Vezes quatro
Vezes cem
Vezes mil
São apenas quatro jovens
Pobres e negros
De incontáveis dores
De vidas metralhadas
De famílias destroçadas
São apenas quatro negros
Vezes quatro vezes quatro vezes quatro
Pares do preconceito
Vítimas do sistema
Filhos
Netos
Bisnetos da opressão

(De Choros e Velas, p. 64-65)

sexta-feira, 5 de abril de 2019

Loucura




voz inconformada de Pagu
ousadia de Leila Diniz
Carolina, possivelmente de Jesus
talvez personagem de Machado
indefinível como Capitu
idealizada como Ceci
ficcional de tão real

quer  o pé no chão
olhar além das lentes
rabiscar palavras desmedidas
sentir o mar
adormecer na areia da praia
desenhar um caminho de conchas
tropeçar nas dunas
se enterrar como criança
mostrar o dedo do meio
ficar apenas com a cabeça de fora
dirão: Tá louca
dirá:  felizmente

muito prazer
a louca