terça-feira, 14 de dezembro de 2021

Além do portão

 Porta, porteira, portal, portão.  A expressão "Além do portão" poderia ser um poético pleonasmo, afinal todo portão deveria levar alguém a extrapolar seu universo. Ele, no entanto, fecha-se mais do que abre. Vive rodeado de medo tendo, como companhia, câmeras que vigiam e protegem. É um símbolo contraditório, pois pode levar ao mundo exterior, ou nos fechar em nossos próprios.

O portão é um controle, quem está dentro, é possível que saia, já quem está fora nem sempre consegue entrar.  É uma esperança de entrada, ou saída. A porta está para casa, como o portão para a rua. Porta leva a diferentes espaços interiores e exteriores, limitados pelo portão, que leva ao mundo, liberta dos limites impostos por um muro. “Vais encontrar o mundo, disse-me meu pai, à porta do Ateneu”. Porta e portão reforçam mundos diferentes. Fora do portão há uma luta que se trava consigo mesmo. Há que se sair da zona de conforto, deixar a barra da saia da mãe, o aconchego da família. 

Bom seria uma sociedade sem muros e limitações. Porta sem chave, sem segredo. Portão assemelha-se a celas, grades, cárcere. Ficar para dentro do portão é emparedar-se, isolar-se, limitar-se a tanto metros quadrados que te separam de outros tantos metros quadrados. Às vezes um latifúndio, outras vezes um cubículo.

É preciso ir olhar, viver além do portão, não se monopolizar. A alteridade se constrói do portão para fora. Quem sabe um dia ele seja um objeto de museu: em um passado, muralhas e portais, muros e portões, em um futuro utópico, só um jardim florido unindo na diferença, um comum sendo compartilhado


segunda-feira, 30 de agosto de 2021

Uma forma de oração

Cansado, mas apaixonado pelo trabalho. Se imaginasse que seus dias seriam tão divertidos, teria largado antes aquele serviço no banco. No uber, apesar do cansaço, das muitas idas e vindas, do trânsito infernal, os passageiros eram, a grande maioria, a garantia de um bom papo e, às vezes,  diversão. Dirigir, conhecer pessoas e a certeza de não ter uma rotina são sua terapia. Naquele final de  tarde de quarta-feira, Juliano resolve aceitar uma corrida para Santo Amaro da Imperatriz. Destino: capela São Miguel Arcanjo.

Entra no táxi uma senhora simpática cheirando a alfazema. Observa os cabelos curtos grisalhos, e as sombras rosas nos olhos que combinam com o casaquinho rosa bebê, com ombreira: "Boa tarde, senhora! O cinto, por favor". Ela retribui os cumprimentos e feliz acomoda-se no banco de trás. Pelo espelho, ele vê que ela ajeita-se, vez ou outra tira a máscara para passar o batom e olhar-se no espelho. Ele resolve puxar uma conversa: "Lindo dia de inverno, a senhora se incomoda de eu pôr uma música?" Ela lhe diz que não e ele coloca na rádio FM e segue pela BR 101, um pouco congestionada, mas até que tranquila no momento. 

O waze o avisa para virar à esquerda, mas para a surpresa do motorista, a senhora lhe diz para seguir em frente, que o guiará.  "Não é lá não?" - ele questiona e avisa que se mudar o trajeto, receberá uma notificação do uber, e que também será questionado sobre tal alteração. Ela sorri, certa do destino. 

Passado um quilômetro, a senhora lhe pede que vire novamente à esquerda e, a seguir, à direita. Bingo! Eis que Juliano recebe um comunicado e alguém o questiona sobre o porquê de não estar ainda na igreja. A senhora conta-lhe que foi seu filho que chamou o uber, que às vezes é  a filha, e que insistem naquele outro endereço. Para surpresa do motorista, do outro lado da linha,  o filho da senhora retruca:  "Ah! O senhor está deixando ela  no bailão, né?"

"Seu destino à esquerda". Encerra a corrida e aguarda a saída da senhora que entra dançando naquela capela. Bem que ele sempre soube que a dança era uma forma de oração.

 São José, 30 de agosto de 2021.


domingo, 18 de julho de 2021

O próximo?

 

    A padaria está lotada. Domingo à tarde, a fome parece de uma semana inteira. Em tempos de pandemia, mantendo-se o distanciamento, a fila chega na porta. Dona Mirta é a próxima a ser atendida; não há fila preferencial, mas ela, com seus sessenta e poucos anos, aguarda ansiosamente de olho na última cuca de banana que reina naquela bancada repleta de pães, bolos e doces. Uma fornalha de pães sai e o cheiro invade o espaço. É quase um ritual, todo final de semana sua família espera por aquele café na casa mais acolhedora da rua. Dona Mirta vive com a casa cheia de amigos e parentes, não sossega e, lógico, não pode faltar aquela tradicional cuca de banana e farofa.

    Duas pessoas estão sendo atendidas por duas funcionárias que parecem cansadas, de toucas e luvas. Há umas dez pessoas aguardando, até que entra uma elegante mulher de salto e cabelos escovados. Quando dona Mirta menos espera, a mulher se mete na frente de todos e, como quem não quer nada com nada, acredita-se invisível e distraída. Dona Mirta começa a ficar inquieta, já tinha visto muita coisa na vida, mas nada parecido com isso e, há dez minutos na fila não deixaria aquela madame passar na sua frente. "Abusada! Quem ela pensa que é? "- pensa Dona Mirta que olha pra trás e retruca pro próximo da fila:

    - Por isso o Brasil não vai pra frente, tá vendo a folga?- diz dona Mirta.

    - Pois então, senhora, o povo não respeita nem os mais velhos.

    - Comigo o buraco é mais embaixo. - diz-lhe Dona Mirta, ainda mais irritada.

    - Não se estresse não. Perigoso hoje é exigir um direito. - afirma o homem.

    - É ruim que vou ficar quieta. Ela pensa que é melhor que nós por estar em cima de um salto?

    As duas pessoas agradecem e vão em direção ao caixa e se escuta um "o próximo". A elegante mulher rapidamente aproxima-se da bancada e, antes mesmo de fazer seu pedido, dona Mirta se aproxima e lhe diz:

    - Vá pro final da fila, eu sou a próxima.

    A mulher olha dona Mirta dos pés à cabeça. Dona Mirta, com seus quase 1.50cm lhe encara. A atendente, sem saber o que fazer, olha pra dona Mirta, já a conhece e sabe bem do poder de uma dona de casa que, aos domingos, tem uma família pra acalentar e que não fica sem sua cuca, haja o que houver. Dona Mirta da um chega pra lá na elegante mulher e diz à funcionária:

    - 10 pães de trigo, 2 doces com farofa e aquela cuca de banana.

    Ao receber o pedido, dona Mirta caminha em direção ao caixa, e ao passar pela fila, a elegante mulher a olha com ar de superioridade e retruca:

    - Não vi a senhora na fila, a senhora é bem mal educada.

    Dona Mirta olha de baixo, por trás dos óculos que lhe caem sobre o nariz e lhe diz:

    - E eu não sabia que, além de mal educada, a senhora era cega.

    Por trás das máscaras dos presentes despontam os risos de quem, massacrado e cansado, acredita que o país ainda tem jeito. Ah, e como tem, dona Mirta que o diga.

São José da Terra Firme, 18 de julho de 2021.

 

sexta-feira, 25 de junho de 2021

Equilíbrio




     Ao nascer, somos expulsos do ventre materno e o primeiro choro é apenas um dos muitos ao longo da vida. Nascer é doloroso, e enxergar este vasto mundo drummondiano é um desafio eterno.  Já nos primeiros meses de vida brota a saudade do aconchego do primeiro lar, onde éramos, em geral um. Uma multiplicidade de percepções e sensações progride rapidamente, nos construindo humanos e, por mais que tentemos fugir da dor, ela estará presente em todos os momentos da existência.

    A partir de muitos aprendizados sinestésicos, passamos a nos desapegar e a nos distanciar do afeto e calor maternos. Outras referências passam a nos rodear, ampliando um mundo ilimitado. Engatinhar, ficar em pé, andar, falar, evitar o perigo e nos comunicar acontecem de forma natural.  No período de alfabetização, a imposição de  regras protagoniza a existência e a dor passa a ser constante, lenta e cruel. Despencamos do colo da mãe para um chão duro e real que nos impõe, a princípio, um único caminho. Sem escolhas, nos tornamos um projeto arquitetônico. À medida que passamos a ser avaliados, a fita métrica e a balança, antes utilizadas só para medir o crescimento físico, passam a precisar o impreciso. 

    Chega a adolescência, aquela fase em que é necessário aprender a lidar com um outro que se estabelece no espelho. Apesar de ser a fase do desabrochar, é um período turbulento. Nosso organismo parece uma bomba relógio, os hormônios entram em ebulição. Espinhas, dores, crises existenciais: "Quem sou eu?" Como se não bastasse, passam a exigir de nós uma decisão sobre o que fazer 8h por dia, cinco vezes por semana. Como uma fruta de enxerto que matura sem amadurecer, chegamos à fase adulta.

    Começam as dores nas costas e as muitas responsabilidades: relacionamento amoroso, estudo, trabalho, trabalho, trabalho.  Para algumas sortudas e  alguns sortudos: estudo, estudo, estudo. Muitas vezes não podemos voltar atrás e refazer o caminho, afinal, temos que nos fixar em uma profissão, ganhar dinheiro, comprar para nos tornar alguém bem sucedido. Quando menos esperamos, como o "filho é o pai do homem", temos no colo alguém sob nossa total responsabilidade, e não queremos que sinta as inevitáveis dores que sentimos até chegar ali. Pura ilusão! O mundo não é para os fracos, não é mesmo? 

    Num piscar de olhos, estamos sentados no sofá, vendo tevê, aos 45 anos de idade. Começamos a pensar na aposentadoria que se distancia. Voltam as crises existenciais: "Quem me tornei?" Temos vontade de quebrar o espelho. Pensamos em largar tudo, afinal, não temos o tempo que tínhamos, as mensagens de amigos nas redes sociais alertam que já vivemos mais da metade do tempo de vida, chegam os cabelos brancos e a preocupação com o envelhecimento é proporcional à decadência do corpo. As pernas não são mais as mesmas; precisamos de óculos para enxergar o óbvio, mas enxergamos a alma de algumas pessoas. 

    Em meio século de vida, se tivermos sorte, poderemos viver nossa curta plenitude. Filhos crescidos, vida amorosa resolvida (mesmo que sozinhos), não precisamos mais comprar tanto, nem provar para ninguém quem somos, mesmo sem ter certeza de quem nos tornamos. Outras dores surgem. Começamos a lembrar da infância, de quando a mãe dizia que depois dos 18 anos o tempo voava. Nos tornamos saudosistas. Lembramos que não éramos nem tão feios e feias como nos achávamos naquele espelho da mãe. Lembramos que perdemos tempo demais na frente da tevê, ou discutindo com aquela pessoa intolerante. Lembramos que nunca deveríamos ter abandonado o que nos fazia felizes. Começamos a olhar álbuns de fotografia e a contar quantos amigos e parentes já se foram. Lembramos que é hora de encontrar aquele sonho que ficou lá atrás adormecido. Lembramos que precisamos frear o tempo que só parece acelerar. Temos medo de outras dores que virão, medo de morrer e de não ter mais tempo para fazer o que já deveríamos ter feito. 

    Quando ultrapassamos esse período que poucos ultrapassarão, é possível que nos  sintamos cansados, mas plenos, pois toda aquela experiência de prazer e dor pode se tornar sabedoria. Olhamos para trás e descobrimos que o caminho poderia ter sido outro, só  não temos como saber. Talvez voltemos a ser como bebê, talvez tenhamos  necessidade de lembrar e falar para não esquecer. Se tivermos feito as pazes com o espelho e o tempo, nosso maior presente será se o desgaste físico for proporcional ao psicológico, pois como afirmou Carl Jung: "A vida acontece num equilíbrio entre a alegria e a dor".  

Florianópolis,  26 de junho de 2021.

sexta-feira, 4 de junho de 2021

Melhor deixar quieto.


Terça-feira fria de outono. Provas sobre a mesa aguardam as devidas correções. Finaliza-se o trimestre e, mais uma vez, uma rede de reclamações me fazem questionar o processo educacional. De uma lado, professores se surpreendem com a falta de conteúdo dos alunos, do outro, alunos reclamam do processo avaliativo, estressante e contraditório. E a culpa recai em profissionais que ainda acreditam fazer a diferença, mas quem ou o que faz a diferença hoje na vida de adolescentes que, apesar do acesso fácil à informação, pouco se importam com conteúdos que não mudaram em dois séculos?

As caixinhas a que se reduziram as disciplinas fazem com que os alunos fragmentem os conteúdos e não percebam, por exemplo, a importância da história nas aulas de literatura. Hoje fiz caras e bocas por conta de uma informação que eu acreditava ser óbvia. Ao contextualizar o livro "O Cortiço" e o Naturalismo no Brasil, alguns alunos me disseram não saber o que é uma carta de alforria. "Como assim?" retruquei. Uma aluna me falou no final da aula que "deveriam saber", mas não sabiam. “Lá vem ela com esses vocabulários desconhecidos, lá eu quero saber o que é alforria?” É fato: o óbvio não é óbvio e 2+2 não é, necessariamente, 4. "Professora chata, né?" Outra situação me chamou atenção: ao resumir o livro, alguém concluiu que o João Romão era apaixonado por Bertoleza, e vice-versa, porque o livro é um romance. Assustaram-se quando eu disse algo assim: Bertoleza não conheceu o amor, gente, pensem o que era ser mulher negra e escrava em um período escravocrata? Acreditam mesmo que ela conheceu o amor?  Se não tivessem sido meus alunos, desconfiaria, mas já repeti, milhares de vezes, que nem todo romance é romântico. O fato é que nossos alunos não nos escutam, porque só escutam o que lhes interessa. Tudo o que lhes interessa está fora dos livros e apostilas, fora da sala de aula. Hoje nem mesmo o vestibular os convence da importância do conhecimento.

A verdade é que não conseguimos, na maioria das vezes, fazer a diferença. Ultrapassar o conteúdo para despertar no aluno a vontade pelo aprendizado. E o que a realidade e as redes sociais nos passam? Que Monark e alguns humoristas enriqueceram, fazendo humor e gravando vídeos. Anitta enriqueceu dançando e cantando funk. “Vou postar vídeos de maquiagem e de moda no tik tok e pronto! Curtidas e compartilhamento me tornarão popular e com muitos fãs, serei bombada e ganharei muito dinheiro, faculdade pra quê?” Logo, no Brasil, não só ser professor deixou de ser sonho, mas aprender disciplinas, com conteúdos e metodologias ainda do século passado deixou de ser interessante. Por mais que mudemos nossas metodologias, ao esbarrar na tecnologia não os surpreendemos, pois, nesse quesito, os papéis se invertem, eles nos ensinam. Mas como eternos sonhadores, acreditamos estar na Suécia e insistimos em uma educação há muito incoerente.

O que esperar de um país que coloca aleatoriamente palhaços e jogadores de futebol no poder legislativo? O que esperar de um país que marginaliza a licenciatura, supervaloriza o judiciário: menos escolas e mais presídios, menos cultura, mais segurança. E à saúde resta algo paliativo afinal, não faltam farmácias, não é mesmo? Enfim, como uma professora idealista que ainda sou, por isso permaneço na ativa, refazendo quase que cotidianamente minhas práticas, mais uma vez, desabafo com vocês, queridos leitores e queridas leitoras. Não sei se já perdemos a luta, talvez estejamos em extinção e, como uma peça rara, sejamos, quiçá, mais valorizados, mas não se vê uma luz no fim do túnel. Veem-se teorias que se perdem, profissionais cansados e perdidos. Somos como caixas que, tiradas das gavetas, não entram mais nos trilhos, não formam mais um todo. Hoje na última aula pensei, "rebobina a fita!",  os alunos me responderiam: o que é isso, profe? Bom não entrar em detalhes. Deixa quieto!

 

São José, 27 de maio de 2021.

segunda-feira, 8 de março de 2021

Grande dia!

 

Acordou, caiu embaixo do chuveiro e lavou-se como quem lava um cão pulguento. Evitou o espelho. Escolheu a dedo uma roupa que, há tempos, não vestia. Nós pés, um tênis confortável, pois haveria de ser um longo percurso. Passou um pente pelos cabelos molhados e, pela primeira vez, em muitos anos, não os secou. Tomou uma xícara de café amargo e saiu, deixando, sobre a mesa, a aliança. Na bolsa, nem batons, nem perfumes, carregava apenas uma certeza, uma máscara reserva e uma caneta que herdou do pai.

Era um lindo dia de março e já era possível sentir o frescor do outono que se aproximava. No trabalho, dirigiu-se à sua sala e a primeira coisa que fez foi jogar, no lixo, a rosa que recebera da empresa. Há dez anos trabalhava naquele local, nunca se atrasou, nem faltou, era uma funcionária exemplar e não faltavam elogios a seu trabalho que, muitas vezes, ultrapassava as oito horas diárias, mas nunca recebeu um puto extra. Às vezes, nem hora pro café tinha. Felizmente, nem filhos teve pra não ser, como sua amiga Nina, demitida meses depois, e o que seria deles agora? E o cargo de chefia quando Marcelo se aposentou, foi pra quem? Quantas vezes ouviu o patrão dizer que chefe de saia não sabia se impor?  Deixou de usar saias e tênis. Sentou-se em sua mesa, enojada daquele computador e só levantou quando terminou de escrever à mão aquela carta que seria o início de sua libertação. Deixou o texto sobre a mesa e saiu sem se despedir. O Joas até tentou alcançá-la na entrada do elevador, mas assim que a porta se fechou, ela lhe deu um sorriso e um tchauzinho sarcásticos.

Atravessou a cidade. No caminho, dois homens lhe desejaram um feliz dia. Ela encarou-os e apontou-lhes o dedo do meio. E da mão esquerda. Atrasada, apressou os passos. Eles pouco entenderam, possivelmente acreditaram ser ela uma louca, como tantas loucas por aí. Entrou no prédio. Lá, após longas conversas com uma das advogadas, assinou, com aquela mesma caneta, alguns papéis. Foram tristes lembranças de longos cinco anos com dois trastes: o patrão e o marido, mas naquele dia não haveria mais lágrimas, só passos e assinaturas. Ao sair, a barriga roncou, agora sim era hora de um bom café.

Sentou-se em uma mesa num dos melhores cafés da cidade. Naquele dia, nada de suco detox ou ovo cozido.  Pediu um pão de queijo e um pedaço de sua torta favorita. Cruzou as pernas, colocando toda sua feminilidade à prova. Deixou a saia subir e despreocupou-se com as calcinhas. Aquele seria o seu dia. O garçom cumprimentou-a e entregou-lhe o menu e uma rosa que se recusou a receber. Encarou-o e não precisou dizer nada. Ele pareceu entender quando ela tirou da bolsa uma caneta e anotou, em um guardanapo, um pequeno texto que lera no caminho: “Um dia uma mulher sábia disse: “Foda-se” e viveu feliz para sempre”. Mais disposta, saiu do café ainda mais decidida.

Seus passos eram tão certeiros que nem sentia cansaço, apesar da péssima noite que teve. O marido, possivelmente, ainda dormia o sono dos justos. Bom que dormisse bastante, pois seu despertar seria inesquecível. Entrou corajosa na delegacia. Há anos a paixão a cegara e a emudecera. Talvez se tivesse recebido mais livros, e menos rosas, mais livros, e menos bonecas, mais livros, e menos batons, despertasse antes da merda que fez. Bem que a tia avisou, e a vizinha também. Elas tinham experiência e já haviam lhe dito pra não largar a faculdade e se enroscar com o primeiro que aparecesse, mas fazer o quê? Preferiu acreditar em contos de fada.  Antes de sair da delegacia, assinou mais alguns papeis com aquela mesma caneta.

Naquele dia, ficou mais leve, deixando, no caminho, o emprego e o marido. Trocou uma rosa por uma caneta. Sentou-se na beira da praia, tirou o tênis e deixou que a água molhasse seus pés.  Estava imune. Nem se sentiu abafada pelo uso contínuo da máscara. Olhou pro céu e lembrou-se de que que não voltaria mais nem àquela casa, nem àquele trabalho. 8 de março de 2021 tornou-se um grande dia.

 

 

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2021

Sobre querer e poder.


 Quero minha sala de aula de volta. Meus alunos e minhas alunas já não me reconhecem, seja pela máscara, seja pela formalidade, agora uma regra. Chego à sala, higienizo a mesa, as canetas e, antes, durante e depois, as mãos. Dou a bênção aos poucos presentes espirrando, no nosso distanciamento, um pouco de álcool 70%, afinal, como bem diz o provérbio: "o seguro morreu de velho".  

Nunca as salas estiveram tão caladas. O distanciamento entre alunos e professor aumentou, os que estão em sala mantêm-se afastados, os que permanecem em casa assistem, através de uma tela, à aula em um espaço que, parece, permanecerá durante algum tempo. É o novo normal. E de repente, a educação vira serviço essencial, deixando ainda mais visível a desigualdade em um país que finge se importar com a educação. Só os olhos nos identificam, a voz abafada esforça-se para se projetar e se fazer entender, tímida, amedrontada, em dois espaços antes, contraditórios. Como ministrar aulas on-line e presenciais ao mesmo tempo? Tirar dúvidas aqui e lá? Falar com os daqui e os de lá? Professor se vira nos 45 min de aula, e como se vira, né?

Ora uma falha humana, ora uma falha técnica, somos guiados  também pelos próprios alunos a resolver problemas: "Aperta o F5, professora." A realidade, no entanto, não é como a propaganda diz, o F5 não funciona e é impossível manter todas as medidas de segurança. Em uma sala tudo ocorre 100%, em outra; alunos te escutam, mas tu não os escutas, noutra; o contrário. Perde-se a estabilidade. Nós nos sentimos, além de amedrontados, perdidos, pois exigem de nós um conhecimento que a universidade não nos passou, que professor teve na graduação um curso de tecnologia da informação? Bom lembrar que, em 2020, contrariando o que alguns pensam, não deixamos de ministrar nossas aulas, baixamos programas específicos, gravamos aulas e as editamos. Passamos horas e horas na frente de um computador que, muitas vezes, não tinha a tecnologia necessária para comportar tanta novidade. Eu comprei quadro branco, canetas, apagador e paguei, durante todo o ano, um programa de edição. Meu privado tornou-se parcialmente público.

Diferente de muitos professores e professoras, posso - ainda -  dizer que sou uma sortuda, pois na escola em que trabalho, apesar de pública, há janelas e portas enormes abertas ao novo e, tenta-se, a todo custo, fechá-las ao acaso, um vírus que muta e mata, abarrota hospitais e cemitérios. A linha de frente dos profissionais da saúde é a emergência, a nossa é a sala de aula que não é mais a mesma. Enquanto eles são assombrados por um vírus, nós somos perseguidos pela ignorância. Um mundo físico, cercado de quadros, livros e sala cheia era nossa zona de conforto, já o virtual estava mais relacionado a algumas horas-extras e ao lazer. Como se não bastasse, expomos nossas imagens e nossas fraquezas ao vivo e a cores. 

Sinto-me, assim como muitos de meus companheiros e minhas companheiras de trabalho, um escudo, às vezes um ponto em cima de uma árvore à espera de um raio. Quero minha sala de aula de volta. Quero meus alunos de volta, bagunceiros e sorridentes me dizendo "bom dia" sem um bloqueio na frente do rosto. Quero poder me aproximar deles, tocar seus ombros e perguntar se conseguem analisar aquele período composto e perceber a importância dos elementos coesivos, em especial, em um texto técnico-científico. Enquanto nos viramos com álcool, máscara, garrafa de água, fone de ouvido, computador e câmeras, nossas seis valiosas armas, cai a ficha, a falta de estrutura nos textos de alunos e alunas reflete o problema de coesão em um país fragmentado, um Brasil em que teoria e prática são para poucos. Bem lá no fundo sempre soube que "querer não é poder". 

sábado, 2 de janeiro de 2021

Dejà vu

Sentada em meu jardim, aprimorado durante a pandemia, penso no ano que chegou chegando. Sufocado e rançoso, felizmente já se foi. Demorou-se. Foi lento e atípico, deixando rastros. Chegamos à 3a. década do século XXI esperando mais. Mais empatia. Mais respeito. E menos. Menos racismo. Menos misoginia. Menos desigualdade. Menos egoísmo e desrespeito. 

A cadeira que me abriga parece me pedir cautela. Nada de ficar se balançando como criança. Necessitamos, com urgência, de estabilidade, de um governo que se importe com quem menos tem, com quem mais sofre, com quem mais morre, no individual ou no coletivo. Este Brasil, ainda no novo normal, nasce como uma criança não planejada, mas que terá, com certeza, uma vida tumultuada, seguida de restrições, dores e mortes. Desculpas pelo meu pessimismo, se temos, entretanto, que nos planejar para o ano, é necessário recordar o que passou, manter-nos ligados à história para que não nos frustremos ainda mais. Podemos vestir o branco sim, mas o branco da paz hoje é o de quem está na linha de frente em hospitais tentando salvar vidas. Já o verde da esperança é o da mata que queimou e, ainda, corre riscos, e não são poucos. O vermelho do amor é o sangue derramado de seres ora na cidade, ora na floresta. Balas. Facas. Queimadas. Mulheres, negros, crianças e idosos ainda são as maiores vítimas.

Eu já passei o réveillon em quarto de hospital e em velório, logo, sempre é bom lembrar que não há dias para morrer, nem nascer, há, no entanto, dias para lutar. Enquanto brindávamos a passagem de ano, pessoas buscavam uma cama no hospital. Enquanto comíamos e sorríamos, pacientes eram entubados, alguns não resistiram. E mais uma criança, a Alice, de apenas 6 anos, morreu neste primeiro dia do ano baleada em uma comunidade, Alice não teve oportunidade de conhecer um país das maravilhas. O fato é que quem sobreviver a esta pandemia, terá o réveillon de 2022 para comemorar, enquanto muitos sequer chegarão à páscoa. Sinto muito, leitor e leitora, mas não consigo deixar de pensar nisso. A morte, quando inesperada e prematura, ainda me incomoda muito, não consigo ficar ilesa. Há um vírus que tem nos mostrado o quão somos pequenos, impotentes e vulneráveis. 

Como o cimento pesa mais para quem fica do que para quem vai, ao fazer uma selfie, observo as marcas que os últimos tempos me deixaram. Sem maquiagem, como quase sempre, mas ainda com os cabelos pintados, faço projetos a curto prazo. Se por um lado, aceito as marcas físicas da idade que avança, por outro não sei muito bem o que fazer com algumas dores na alma. Nesta pandemia, envelheci além do tempo. Faltaram-me abraços, beijos, aglomerações com gente querida. O necessário isolamento social me trouxe para uma realidade que respeitei, mas com a qual tenho dificuldades, após longos meses, de me acostumar. Sou da rua, da vida, do tumulto, da praça cheia com os meus levantando bandeira e exigindo respeito.

Como as orquídeas que se agarram a troncos, tento me agarrar ao que tenho: marido, filhos, literatura, música, jardim, só não sei se vou florir neste ano. Só tenho certeza da luta que se trava já, nas primeiras horas de 2021. Como disse o amigo Frederico, não será um ano fácil, não serão poucas as pedras a serem retiradas, tamanho o retrocesso que tivemos nos últimos tempos. Vou continuar com a máscara, com o álcool, evitando saídas e assim como Caetano, vou tentar fazer um acordo com o tempo: "Compositor de destinos/ Tambor de todos os ritmos/ Tempo, tempo, tempo, tempo/ Entro em um acordo contigo".