A padaria está lotada. Domingo à tarde, a fome parece de uma semana
inteira. Em tempos de pandemia, mantendo-se o distanciamento, a fila chega na
porta. Dona Mirta é a próxima a ser atendida; não há fila preferencial, mas ela,
com seus sessenta e poucos anos, aguarda ansiosamente de olho na última cuca de
banana que reina naquela bancada repleta de pães, bolos e doces. Uma fornalha
de pães sai e o cheiro invade o espaço. É quase um ritual, todo final de semana
sua família espera por aquele café na casa mais acolhedora da rua. Dona Mirta
vive com a casa cheia de amigos e parentes, não sossega e, lógico, não pode
faltar aquela tradicional cuca de banana e farofa.
Duas pessoas estão sendo atendidas por duas funcionárias que parecem
cansadas, de toucas e luvas. Há umas dez pessoas aguardando, até que entra uma
elegante mulher de salto e cabelos escovados. Quando dona Mirta menos espera, a
mulher se mete na frente de todos e, como quem não quer nada com nada,
acredita-se invisível e distraída. Dona Mirta começa a ficar inquieta, já tinha
visto muita coisa na vida, mas nada parecido com isso e, há dez minutos na fila
não deixaria aquela madame passar na sua frente. "Abusada! Quem ela pensa
que é? "- pensa Dona Mirta que olha pra trás e retruca pro próximo da
fila:
- Por isso o Brasil não vai pra frente, tá vendo a folga?- diz dona
Mirta.
- Pois então, senhora, o povo não respeita nem os mais velhos.
- Comigo o buraco é mais embaixo. - diz-lhe Dona Mirta, ainda mais
irritada.
- Não se estresse não. Perigoso hoje é exigir um direito. - afirma o
homem.
- É ruim que vou ficar quieta. Ela pensa que é melhor que nós por estar
em cima de um salto?
As duas pessoas agradecem e vão em direção ao caixa e se escuta um "o
próximo". A elegante mulher rapidamente aproxima-se da bancada e, antes
mesmo de fazer seu pedido, dona Mirta se aproxima e lhe diz:
- Vá pro final da fila, eu sou a próxima.
A mulher olha dona Mirta dos pés à cabeça. Dona Mirta, com seus quase
1.50cm lhe encara. A atendente, sem saber o que fazer, olha pra dona Mirta, já
a conhece e sabe bem do poder de uma dona de casa que, aos domingos, tem uma
família pra acalentar e que não fica sem sua cuca, haja o que houver. Dona Mirta
da um chega pra lá na elegante mulher e diz à funcionária:
- 10 pães de trigo, 2 doces com farofa e aquela cuca de banana.
Ao receber o pedido, dona Mirta caminha em direção ao caixa, e ao passar
pela fila, a elegante mulher a olha com ar de superioridade e retruca:
- Não vi a senhora na fila, a senhora é bem mal educada.
Dona Mirta olha de baixo, por trás dos óculos que lhe caem sobre o nariz
e lhe diz:
- E eu não sabia que, além de mal educada, a senhora era cega.
Por trás das máscaras dos presentes despontam os risos de quem,
massacrado e cansado, acredita que o país ainda tem jeito. Ah, e como tem, dona
Mirta que o diga.
São José da Terra Firme, 18 de julho de 2021.