sexta-feira, 25 de junho de 2021

Equilíbrio




     Ao nascer, somos expulsos do ventre materno e o primeiro choro é apenas um dos muitos ao longo da vida. Nascer é doloroso, e enxergar este vasto mundo drummondiano é um desafio eterno.  Já nos primeiros meses de vida brota a saudade do aconchego do primeiro lar, onde éramos, em geral um. Uma multiplicidade de percepções e sensações progride rapidamente, nos construindo humanos e, por mais que tentemos fugir da dor, ela estará presente em todos os momentos da existência.

    A partir de muitos aprendizados sinestésicos, passamos a nos desapegar e a nos distanciar do afeto e calor maternos. Outras referências passam a nos rodear, ampliando um mundo ilimitado. Engatinhar, ficar em pé, andar, falar, evitar o perigo e nos comunicar acontecem de forma natural.  No período de alfabetização, a imposição de  regras protagoniza a existência e a dor passa a ser constante, lenta e cruel. Despencamos do colo da mãe para um chão duro e real que nos impõe, a princípio, um único caminho. Sem escolhas, nos tornamos um projeto arquitetônico. À medida que passamos a ser avaliados, a fita métrica e a balança, antes utilizadas só para medir o crescimento físico, passam a precisar o impreciso. 

    Chega a adolescência, aquela fase em que é necessário aprender a lidar com um outro que se estabelece no espelho. Apesar de ser a fase do desabrochar, é um período turbulento. Nosso organismo parece uma bomba relógio, os hormônios entram em ebulição. Espinhas, dores, crises existenciais: "Quem sou eu?" Como se não bastasse, passam a exigir de nós uma decisão sobre o que fazer 8h por dia, cinco vezes por semana. Como uma fruta de enxerto que matura sem amadurecer, chegamos à fase adulta.

    Começam as dores nas costas e as muitas responsabilidades: relacionamento amoroso, estudo, trabalho, trabalho, trabalho.  Para algumas sortudas e  alguns sortudos: estudo, estudo, estudo. Muitas vezes não podemos voltar atrás e refazer o caminho, afinal, temos que nos fixar em uma profissão, ganhar dinheiro, comprar para nos tornar alguém bem sucedido. Quando menos esperamos, como o "filho é o pai do homem", temos no colo alguém sob nossa total responsabilidade, e não queremos que sinta as inevitáveis dores que sentimos até chegar ali. Pura ilusão! O mundo não é para os fracos, não é mesmo? 

    Num piscar de olhos, estamos sentados no sofá, vendo tevê, aos 45 anos de idade. Começamos a pensar na aposentadoria que se distancia. Voltam as crises existenciais: "Quem me tornei?" Temos vontade de quebrar o espelho. Pensamos em largar tudo, afinal, não temos o tempo que tínhamos, as mensagens de amigos nas redes sociais alertam que já vivemos mais da metade do tempo de vida, chegam os cabelos brancos e a preocupação com o envelhecimento é proporcional à decadência do corpo. As pernas não são mais as mesmas; precisamos de óculos para enxergar o óbvio, mas enxergamos a alma de algumas pessoas. 

    Em meio século de vida, se tivermos sorte, poderemos viver nossa curta plenitude. Filhos crescidos, vida amorosa resolvida (mesmo que sozinhos), não precisamos mais comprar tanto, nem provar para ninguém quem somos, mesmo sem ter certeza de quem nos tornamos. Outras dores surgem. Começamos a lembrar da infância, de quando a mãe dizia que depois dos 18 anos o tempo voava. Nos tornamos saudosistas. Lembramos que não éramos nem tão feios e feias como nos achávamos naquele espelho da mãe. Lembramos que perdemos tempo demais na frente da tevê, ou discutindo com aquela pessoa intolerante. Lembramos que nunca deveríamos ter abandonado o que nos fazia felizes. Começamos a olhar álbuns de fotografia e a contar quantos amigos e parentes já se foram. Lembramos que é hora de encontrar aquele sonho que ficou lá atrás adormecido. Lembramos que precisamos frear o tempo que só parece acelerar. Temos medo de outras dores que virão, medo de morrer e de não ter mais tempo para fazer o que já deveríamos ter feito. 

    Quando ultrapassamos esse período que poucos ultrapassarão, é possível que nos  sintamos cansados, mas plenos, pois toda aquela experiência de prazer e dor pode se tornar sabedoria. Olhamos para trás e descobrimos que o caminho poderia ter sido outro, só  não temos como saber. Talvez voltemos a ser como bebê, talvez tenhamos  necessidade de lembrar e falar para não esquecer. Se tivermos feito as pazes com o espelho e o tempo, nosso maior presente será se o desgaste físico for proporcional ao psicológico, pois como afirmou Carl Jung: "A vida acontece num equilíbrio entre a alegria e a dor".  

Florianópolis,  26 de junho de 2021.

sexta-feira, 4 de junho de 2021

Melhor deixar quieto.


Terça-feira fria de outono. Provas sobre a mesa aguardam as devidas correções. Finaliza-se o trimestre e, mais uma vez, uma rede de reclamações me fazem questionar o processo educacional. De uma lado, professores se surpreendem com a falta de conteúdo dos alunos, do outro, alunos reclamam do processo avaliativo, estressante e contraditório. E a culpa recai em profissionais que ainda acreditam fazer a diferença, mas quem ou o que faz a diferença hoje na vida de adolescentes que, apesar do acesso fácil à informação, pouco se importam com conteúdos que não mudaram em dois séculos?

As caixinhas a que se reduziram as disciplinas fazem com que os alunos fragmentem os conteúdos e não percebam, por exemplo, a importância da história nas aulas de literatura. Hoje fiz caras e bocas por conta de uma informação que eu acreditava ser óbvia. Ao contextualizar o livro "O Cortiço" e o Naturalismo no Brasil, alguns alunos me disseram não saber o que é uma carta de alforria. "Como assim?" retruquei. Uma aluna me falou no final da aula que "deveriam saber", mas não sabiam. “Lá vem ela com esses vocabulários desconhecidos, lá eu quero saber o que é alforria?” É fato: o óbvio não é óbvio e 2+2 não é, necessariamente, 4. "Professora chata, né?" Outra situação me chamou atenção: ao resumir o livro, alguém concluiu que o João Romão era apaixonado por Bertoleza, e vice-versa, porque o livro é um romance. Assustaram-se quando eu disse algo assim: Bertoleza não conheceu o amor, gente, pensem o que era ser mulher negra e escrava em um período escravocrata? Acreditam mesmo que ela conheceu o amor?  Se não tivessem sido meus alunos, desconfiaria, mas já repeti, milhares de vezes, que nem todo romance é romântico. O fato é que nossos alunos não nos escutam, porque só escutam o que lhes interessa. Tudo o que lhes interessa está fora dos livros e apostilas, fora da sala de aula. Hoje nem mesmo o vestibular os convence da importância do conhecimento.

A verdade é que não conseguimos, na maioria das vezes, fazer a diferença. Ultrapassar o conteúdo para despertar no aluno a vontade pelo aprendizado. E o que a realidade e as redes sociais nos passam? Que Monark e alguns humoristas enriqueceram, fazendo humor e gravando vídeos. Anitta enriqueceu dançando e cantando funk. “Vou postar vídeos de maquiagem e de moda no tik tok e pronto! Curtidas e compartilhamento me tornarão popular e com muitos fãs, serei bombada e ganharei muito dinheiro, faculdade pra quê?” Logo, no Brasil, não só ser professor deixou de ser sonho, mas aprender disciplinas, com conteúdos e metodologias ainda do século passado deixou de ser interessante. Por mais que mudemos nossas metodologias, ao esbarrar na tecnologia não os surpreendemos, pois, nesse quesito, os papéis se invertem, eles nos ensinam. Mas como eternos sonhadores, acreditamos estar na Suécia e insistimos em uma educação há muito incoerente.

O que esperar de um país que coloca aleatoriamente palhaços e jogadores de futebol no poder legislativo? O que esperar de um país que marginaliza a licenciatura, supervaloriza o judiciário: menos escolas e mais presídios, menos cultura, mais segurança. E à saúde resta algo paliativo afinal, não faltam farmácias, não é mesmo? Enfim, como uma professora idealista que ainda sou, por isso permaneço na ativa, refazendo quase que cotidianamente minhas práticas, mais uma vez, desabafo com vocês, queridos leitores e queridas leitoras. Não sei se já perdemos a luta, talvez estejamos em extinção e, como uma peça rara, sejamos, quiçá, mais valorizados, mas não se vê uma luz no fim do túnel. Veem-se teorias que se perdem, profissionais cansados e perdidos. Somos como caixas que, tiradas das gavetas, não entram mais nos trilhos, não formam mais um todo. Hoje na última aula pensei, "rebobina a fita!",  os alunos me responderiam: o que é isso, profe? Bom não entrar em detalhes. Deixa quieto!

 

São José, 27 de maio de 2021.