sábado, 30 de setembro de 2023

Sobre pés e calçados



No início da pandemia, voltei a correr na esteira e a pular corda, estava a mil. Acostumada a andar na rua, tive que ficar em casa e o jeito era me movimentar. Resultado: ganhei de presente uma tendinose que começou no pé direito e agora está nos dois. Parei com os exercícios, engordei um pouco, e o mundo parece que virou do avesso. Nesse período tudo ficou mais pesado: o país, a sociedade, a família, eu. 

Conversando com meus tendões, tento saber a causa desse problema. Sei que é algo que ocorre há anos com muitas mulheres. Minha mãe reclamava dos joanetes, minha sogra, dos olhos de peixe. Fascite plantar, tendinite, artrose, neuroma de Morton são algumas das doenças nos pés. Anatomicamente, os pés têm uma estrutura complexa, sendo formados por muitos músculos, ossos, ligamentos e articulações. E eles ajudam a nos manter em pé.

Algumas pessoas pisam forte no chão. Decididas, parecem sempre saber o caminho a seguir. Outras pisam timidamente, têm dúvidas aonde ir. Algumas parecem ter patins nos pés, não andam, deslizam. Há as que tiram os pés do chão com facilidade, e as que os arrastam. Os pés nos equilibram, e nos levam, obedecem a comandos e durante uma vida não reclamam, até que começam a não suportar mais tanto peso e descaso, pois os subestimamos, colocando-os dentro de sapatos, botas e sandálias, esquecendo-nos do quão eles são importantes, decisivos pra que coloquemos em prática nosso livre arbítrio.

Quando criança, eu lavava os pés da imagem do Senhor dos Passos. Só meninas antes da primeira menstruação podiam exercer essa atividade. A água do lava pés era distribuída em garrafas à população. E por que lavar os pés? Hoje, pensando nisso, acredito que seja a importância dos passos de Jesus na via crucis. Além do fato de os apóstolos terem tido os pés lavados por Jesus. Nessa cena, há uma troca de papeis, e caracteriza um gesto de humildade de quem lidera, de quem é visto como “superior”. O contrário acontece ao se ver um engraxate a lustrar o sapato de um homem. Nunca vi mulheres tendo seus sapatos engraxados, porque era sinônimo de poder. Feitos pra proteger as extremidades do calor e do frio excessivos, os calçados, já entre gregos e romanos, passaram a caracterizar a classe social a que o indivíduo pertencia. Assim, o sapato adquiriu importância ao longo dos anos, basta lembrar que só os negros alforriados os usavam. Outro exemplo são os sapatos e botas dos militares que precisam ser lustrados. 

Nossos pés nos suportam durante uma vida inteira. De repente, é hora de parar, tirar os calçados, reaprender a andar, voltar a pôr os pés no chão, mesmo que de cimento. Há alguns anos parei pra pensar no que vale realmente a pena. Como acredito nos sinais do meu corpo, penso que meus pés querem me dizer algo, e se falassem, talvez me dissessem pra prestar mais atenção neles, e nas minhas pisadas, que nosso relacionamento está por um fio. Acho que é a tal da consciência corporal de que meu filho tanto fala. Sei que não poderei andar por aí descalça, mas não são mais meus olhos que escolhem meus calçados, mas meu pés. É hora de ouvir o que eles têm a me dizer.

  Florianópolis, 30 de setembro de 2023.