segunda-feira, 16 de novembro de 2020

"O sol há de brilhar mais uma vez"

Hoje, dia de eleição, impossível não me lembrar de meu pai e do prazer que ele tinha em votar. Ele acreditava que teríamos um país com salários mais justos e com menos desigualdade social. Votei com convicção, mas não tenho as mesmas esperanças de outrora. Não me vejo com a felicidade e a esperança que meu pai tinha ao escolher alguém que o representasse. Ele valorizava tanto o voto que votou mesmo em uma cadeira de rodas. No final da década de 80, acompanhei o engajamento de meu pai e um sonho realizado: escolher o presidente do país. E não foram poucas as decepções que se seguiram. E da esfera federal à estadual, quando se pensa em Santa Catarina, a desilusão foi ainda maior. Meu pai, um operário, um sindicalista, era MDB, partido que se opunha à ditadura e à conservadora ARENA. Tínhamos nomes de respeito, como Nelson Wedekin, e, no cenário nacional, Ulisses Guimarães. Bons e ilusórios tempos, afinal, aprovamos uma Constituição solidária com objetivos fundamentais de “construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”. Após algumas conquistas no início deste século, nos últimos anos retrocedemos e fomos surpreendidos por uma parcela grande da população que enaltece os anos de chumbo, colocando a economia acima das causas sociais. Como consequência, (re)nascem os muitos preconceitos que não foram extintos e se fortalece uma direita de extrema. A alegria durou pouco. Vimos aquele partido que parecia nos representar virar do avesso e colocar, por exemplo, um batalhão da PM em cima dos professores que exigiam melhores condições de trabalho e salário. Nem os idosos escaparam do autoritarismo do governador Pedro Ivo, lembra-se dele? Um opositor à ditadura revelou-se um ditador. E o que tivemos depois foi pedreira: Casildo Maldaner, Paulo Afonso, Luiz Henrique da Silveira, entre outros. Recuso-me a falar do Amin. Que pesadelo! E em Florianópolis mantém-se o conservadorismo como bandeira, basta ouvir a propaganda eleitoral. Estou do lado esquerdo, porque ser de esquerda está muito além de ser comunista, petista e balançar uma bandeira vermelha com foice e martelo. Ser de esquerda é ser, verdadeiramente contra injustiças sociais, por isso, não queremos bandido morto, porque o único bandido que morre é o pobre e negro. Ser de esquerda é respeito acima de tudo, inclusive às diversas religiões, afinal, se o Estado é laico, não se pode defender apenas um deus. Ser de esquerda é investir na ciência e em pesquisas, valorizando as universidades que tanto nos beneficiam com a erradicação de doenças, por exemplo. Ser de esquerda é lutar para que se tenha justiça social, que todos os cidadãos tenham direito à vida, à moradia, à lazer, à educação e à cultura. Ser de esquerda é ser livre para pensar e agir. O problema é que a maioria dos políticos brasileiros, por pura vaidade, em uma briga de cão e gato, ou gato e rato, só pensam no poder, outro problema maior ainda é defendermos lados que, bem lá no fundo, pouco têm representado um povo, à margem, que precisa de saneamento básico, não de asfalto; de creche, não de curso de inglês. Quando assumem cargos, políticos em geral só estão do lado do poder, da elite, como há anos nos mostra a história. “Viu-se conservador em política, porque o pai o era, o tio, os amigos da casa, o vigário da paróquia, e ele começou na escola a execrar os liberais.” Tal trecho do livro “Esaú e Jacó”, de Machado de Assis, reforça como se estrutura a política. Estar à esquerda ou à direita vai muito além da revolução russa, pois já havia oposição no Brasil Império, que estava diretamente ligada ao partido Republicano e aos ideais franceses de igualdade, fraternidade e liberdade. Vale ressaltar, no entanto, que os membros desse partido defendiam interesses de uma elite, apesar de serem contra a escravidão, por exemplo. E ser comuna é estar do lado do povo, simples assim, não necessariamente do lado de Lenin. Ser de esquerda é ser jacobino, é sonhar com uma revolução. Já ser de direita é estar do lado de quem tem o poder, logo, do lado do patrão, do empresário. Ser de direita é manter-se, mesmo sem o ser, um privilegiado, branco, hétero e macho. Ser de direita é defender apenas um deus, é não ter empatia, é proteger a si e a sua família, o resto que se exploda. Ser de direita é ser monarquista, defender um rei, um palácio, uma família real, pois a plebe precisa se esforçar um pouco mais, o governo não pode ficar dando peixe, não é mesmo? E daí você me pergunta se quero viver em Cuba ou na Venezuela. Não, querido amigo, quero viver num país livre e justo, independente de que lado estejamos. Bandeiras não tiram ninguém da miséria e não trazem justiça social, ações sim. Não pretendo ser radical, mas como ser humano não posso estar do lado de um desenvolvimento não-sustentável, do lado de quem desrespeita índios, negros, mulheres e apresenta, como discurso único, em uma pandemia que assola o mundo: “todos vão morrer um dia”. Há, caro leitor, diferença grande em morte matada e morte morrida como já nos disse o Severino de João Cabral de Mello Neto. O domingo finda. As apurações já começaram e um partido de direita parece vencer mais uma vez as eleições em Florianópolis. Por enquanto nada novo, apesar dos sinais de alguma mudança. A vida segue e os bem eleitos já pensam nas eleições de 2022. Se meu pai estivesse aqui ele excomungaria os resultados e talvez dissesse: “Todo povo tem o governo que merece”. “Pera aí, eu não mereço não.” O fato é que meu desânimo, querido leitor, se deve mais ao povo que aos políticos. Ao atravessar a ponte para ir votar eu vi uma cidadã jogando lixo pela janela e também vi um motorista ao celular. Na fila da seção, vi gente que nem sabia qual era sua seção. E não foram poucas pessoas ao meu redor que não votaram porque não tiveram tempo de escolher um candidato. Sem falar daquelas que, na última hora, pegaram um santinho qualquer de um partido para votar, com uma única condição: só não pode ser esquerdista. E para encerrar, um país que leva a sério um processo democrático, como a eleição, um caso de sexo em uma repartição pública levaria um político a perder o cargo e jamais ser reeleito. Triste! O povo teme os candidatos de “esquerda”, que defendem causas sociais, prefere os que fazem do gabinete, um quarto de motel. Será que um dia meus olhos voltarão a brilhar como os de meu pai em frente a uma urna? Eleições de 15 de novembro de 2020.

quarta-feira, 4 de novembro de 2020

“Só quem já morreu na fogueira Sabe o que é ser carvão”

Como manezinhas e catarinenses fomos, durante a semana, enxovalhadas nas redes sociais. Fotos, vídeos e um julgamento, que colocou a vítima no banco de réu, entalaram nossas goelas, restando um nojo coletivo, mas gritamos: “Não existe estupro culposo”. E, por incrível que pareça, nada disso tem me surpreendido, não esperava nada diferente de um povo que, ao colocar certos representantes no poder, institucionalizou a violência, criminalizando movimentos sociais, em especial, o feminismo. Quem não se lembra dos gritos mandando a presidenta Dilma “tomar no...”? Ou dos adesivos para carros, sexualmente ofensivos, vendidos na internet? Já esperava o aumento do feminicídio, do machismo, de mortes por armas de fogo e, o pior, já esperava também um comportamento do judiciário no caso de Mariana Ferrer. Não é novidade que a justiça neste país sempre teve lado e preço, só que antes era algo mais velado, agora está escancarado. Para ilustrar isso, vale uma referência do livro “Boca do Inferno”, de Ana Miranda, que leio esta semana, homens de cabedal “terão suas mentiras para provar que estavam em algum lugar à hora do crime. Têm seus amigos poderosos na Corte e se nada pudermos provar, serão logo perdoados e soltos. Como sempre. Conheces muito bem nossa justiça.” Apesar de hoje vivermos em um país republicano, séculos depois ainda não resolvemos nossos problemas mais graves do período colonial, o estupro é só um deles. Por conta disso, alguns estarrecimentos nas redes não me comovem, muito pelo contrário, me enojam, pois avisos não faltaram, preferiram acreditar em fake News e aderir ao negacionismo científico. Agora não faltarão consequências, pois “quem planta, colhe”, já dizia minha mãe. O fato é que não nos perdoam por ser hoje maioria nas universidades públicas, não nos perdoam quando pensamos, escrevemos, denunciamos e somos quem somos. Não nos perdoam quando chefiamos escolas, hospitais, repartições públicas. Não nos perdoam por não aceitar cantadas e dizer não. Culpam nossas saias, nossos vestidos e batons vermelhos, culpam-nos até por nosso sorriso. Fingem se compadecer de nosso sangue que escorre quando somos arrastadas em vias públicas, esfaqueadas, baleadas, pois ainda nos querem santas, imaculadas e, obviamente, caladas. O mais triste é saber de mulheres que defendem os tais “cidadãos” que reforçam o machismo e que legislam sobre nossos corpos. Abrir a perna, ou morrer? Morra, desgraçada! Uma a menos. Retorno à Ana Miranda: “Uma mulher honrada não deve ir à rua a não ser para seu batismo, casamento e enterro”. Perceptível a semelhança entre o Brasil de hoje e a colônia portuguesa do século XVII, mas há uma grande e fundamental diferença: vamos às ruas sim, vamos aonde quisermos ir, e vamos gritar, porque não aceitamos mais intimidações. Domingo, conversando sobre política com uma amiga, ela afirmou que o prefeito, candidato à reeleição, perderia pontos nas próximas pesquisas. Eu discordei dela e disse que aconteceria exatamente o contrário, que ele subiria. Lógica simples: a culpa é da mulher, sempre, esse é o raciocínio de grande parcela de brasileiros. Este país, que nasceu do estupro de ideias, culturas e mulheres, mantém-se em todos os lugares, por isso ainda somos objetificadas, até quando? Apesar de alguns retrocessos, já temos um caminho a percorrer, um deles é elegendo mais mulheres que nos representem. Além disso, faz-se necessário escancarar a hipocrisia que tanto nos incomoda, em especial quando vemos postagens de pessoas que, na teoria são contra o estupro, mas atrás de mesas têm usado o poder para fazer valer um instinto animal. Já nos reduziram a bruxas, já nos criminalizaram como Medusas, mas como tão bem disse Rita Lee: “Só quem já morreu na fogueira Sabe o que é ser carvão”, resistiremos.