quinta-feira, 19 de outubro de 2023

Uma questão de moda



Você, com certeza, conhece aquelas camisolas verdes ou azuis de amarrar na cintura, feitas sob medida pra você. Se você pensou em um lindo penhoar de seda está completamente enganada, se pensou em um roupão de algodão para colocar em cima do pijama, também está muiiiito enganada.  Hoje fui fazer alguns exames básicos, nada anormal, e tive que vestir um desses camisolões e, ao passar por uma médica,  ela me disse de antemão: “Os homens é que inventaram essa máquina pra nos sacrificar”. É provável que esses camisolões também tenham sido obra deles, retruquei.

 Sabe de que objeto ela estava falando? Uma pista: amassa teu seio feito um misto quente, você tem que ficar – além de quase pelada na frente de uma desconhecida – toda torta e imóvel, sem falar no sistema nervoso que fica em frangalhos depois de “n” perguntas do tipo: quantos anos você tem? Tem algum caso de doença grave na família? Bebe ou fuma? Toma algum remédio para... putz, espera-se sempre  o pior – espera-se sempre entrar para uma estatística. Sem falar nas propagandas cotidianas que te alertam todos os dias: faça seu auto-exame... depois dos 30 não se esqueça de fazer anualmente sua...putz, já faz ...putz. E teu sanduíche, no ponto, é puxado pra cá, esticado pra lá, sua cabeça entorta, a técnica pede que respires normal e, depois de alguns minutos amassada, torta e nervosa ela te diz, liberada. Sou obrigada a repetir, como mulher sofre!  Por que será que os homens não inventaram uma sanduicheira para... putz. E ainda reclamam do toque retal, algo para nós, mulheres (outros tipos de toque, logicamente) mais do que normal. Se eu fosse médica seria, só de propósito, urologista. He,He,He. Brincadeirinha, meus queridos! Muito obrigada por essas máquinas que salvam nossas vidas. Mas que é estranho é, não concordam, amigas?

Você agora, com certeza, já sabe a que me refiro, sim, refiro-me a uma mamografia. E não é que foram, realmente, os homens os responsáveis por esse aparelho que tem salvado a vida de tantas mulheres que sofrem, nesses momentos sim, isso é fato, mas que não sofrem mais do que possuir uma doença tão avassaladora como o câncer de mama. E depois vêm outros exames: densitometria óssea, ultrassonagrafia vaginal, ultrassom de mama. Só nessas horas dá pra entender o porquê Deus ser homem, ele não gostaria de ter jornada tripla de trabalho, tampouco, de fazer tanto exame assim, como ele construiria o mundo em 7 dias se ele tivesse que... deixa pra lá, já disse outra vez que Deus é muito mais feminino que masculino, o sexo, ou gênero aqui não tem nada a ver com nada. Mais uma de minhas viagens.

É fato que, ao fazer um exame, em invés de verificarmos nosso estado de saúde, verificamos nosso estado de doença: colesterol, triglicerídeos, glicose são os menos preocupantes. Outros nos estressam, nos deixam a mil e a mamografia é um deles.  O medo nos acompanha nesses momentos: medo de adoecer; medo de sofrer; medo de deixar de viver; medo de morrer. Medo.

Interessante observar que hoje as doenças do coração não nos perturbam mais como outrora. Na realidade, o sonho de todo mundo é morrer de parada cardíaca, ataque fulminante. Sem dor, sem sofrimento, sem internação, sem muitos gastos. Além disso, diria que nenhuma dor do coração dói como doía. Hoje estamos nos acostumando com a solidão, não nos aturamos mais, o mal do século é o próprio homem que cava seu destino: não casa, não tem filhos, não forma família. Quem você conhece que pretende formar família hoje? Só não pode faltar o i-phone, o i-pad entre outras tecnologias essenciais à sobrevivência. Morremos de tédio hoje se não tivermos uma ferramenta para nos comunicar. Com quem? Com alguém para curtir, comentar e compartilhar. Quanta viagem!

E quem alguma vez na vida ficou internado em hospital sabe bem que vestir aquela camisola não é nada romântico, tampouco sexy. Nós, mulheres, então, perdemos a vergonha quando vamos dar a luz a uma criança. Expectativa, emoção, amor à flor da pele até que, depois da camisola sexy, colocam um lençol embaixo de sua perna e pronto, a auto-estima vai parar no pé. Não tem jeito não, ninguém gosta daquelas roupinhas de hospital. Se eu fosse estilista criava uns modelitos especiais para os pacientes. Nada de branco, verde e azul, tampouco vermelho, mas algo mais fashion nos deixaria menos estressadas, como se já não bastassem nossas TPMS. É muita falta de cor. Isso só pode ter sido idéia de homem também. KKKKKKKKKKK.  Abaixo os uniformes!!!!! Até no hospital, ninguém merece!!! J

Florianópolis, agosto/2012.

 

sábado, 30 de setembro de 2023

Sobre pés e calçados



No início da pandemia, voltei a correr na esteira e a pular corda, estava a mil. Acostumada a andar na rua, tive que ficar em casa e o jeito era me movimentar. Resultado: ganhei de presente uma tendinose que começou no pé direito e agora está nos dois. Parei com os exercícios, engordei um pouco, e o mundo parece que virou do avesso. Nesse período tudo ficou mais pesado: o país, a sociedade, a família, eu. 

Conversando com meus tendões, tento saber a causa desse problema. Sei que é algo que ocorre há anos com muitas mulheres. Minha mãe reclamava dos joanetes, minha sogra, dos olhos de peixe. Fascite plantar, tendinite, artrose, neuroma de Morton são algumas das doenças nos pés. Anatomicamente, os pés têm uma estrutura complexa, sendo formados por muitos músculos, ossos, ligamentos e articulações. E eles ajudam a nos manter em pé.

Algumas pessoas pisam forte no chão. Decididas, parecem sempre saber o caminho a seguir. Outras pisam timidamente, têm dúvidas aonde ir. Algumas parecem ter patins nos pés, não andam, deslizam. Há as que tiram os pés do chão com facilidade, e as que os arrastam. Os pés nos equilibram, e nos levam, obedecem a comandos e durante uma vida não reclamam, até que começam a não suportar mais tanto peso e descaso, pois os subestimamos, colocando-os dentro de sapatos, botas e sandálias, esquecendo-nos do quão eles são importantes, decisivos pra que coloquemos em prática nosso livre arbítrio.

Quando criança, eu lavava os pés da imagem do Senhor dos Passos. Só meninas antes da primeira menstruação podiam exercer essa atividade. A água do lava pés era distribuída em garrafas à população. E por que lavar os pés? Hoje, pensando nisso, acredito que seja a importância dos passos de Jesus na via crucis. Além do fato de os apóstolos terem tido os pés lavados por Jesus. Nessa cena, há uma troca de papeis, e caracteriza um gesto de humildade de quem lidera, de quem é visto como “superior”. O contrário acontece ao se ver um engraxate a lustrar o sapato de um homem. Nunca vi mulheres tendo seus sapatos engraxados, porque era sinônimo de poder. Feitos pra proteger as extremidades do calor e do frio excessivos, os calçados, já entre gregos e romanos, passaram a caracterizar a classe social a que o indivíduo pertencia. Assim, o sapato adquiriu importância ao longo dos anos, basta lembrar que só os negros alforriados os usavam. Outro exemplo são os sapatos e botas dos militares que precisam ser lustrados. 

Nossos pés nos suportam durante uma vida inteira. De repente, é hora de parar, tirar os calçados, reaprender a andar, voltar a pôr os pés no chão, mesmo que de cimento. Há alguns anos parei pra pensar no que vale realmente a pena. Como acredito nos sinais do meu corpo, penso que meus pés querem me dizer algo, e se falassem, talvez me dissessem pra prestar mais atenção neles, e nas minhas pisadas, que nosso relacionamento está por um fio. Acho que é a tal da consciência corporal de que meu filho tanto fala. Sei que não poderei andar por aí descalça, mas não são mais meus olhos que escolhem meus calçados, mas meu pés. É hora de ouvir o que eles têm a me dizer.

  Florianópolis, 30 de setembro de 2023.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


quarta-feira, 9 de agosto de 2023

Estado de Poesia

 

Cantando Rita Lee no Espaço Cultural Wagner Segura (da esquerda para a direita em cima: Elinete, Denise de Castro; embaixo:   Gabi, eu, Ana, Patrícia e Jaqueline)

Quando jovem, sempre de fora, assistia timidamente a meus irmãos jogar vôlei. Sem habilidade para esportes coletivos, nunca era convidada a fazer parte de time algum. Não fui uma exceção. Afinal, quantas vezes ouvimos que é preciso ter dom para jogar, cantar, dançar? Quem dera, no entanto, nos deixassem fazer aquilo para o qual realmente tínhamos aptidão, ou gosto ao menos.

Muitas mães e pais acham lindo quando os filhos cantam, tocam e atuam nos dias festivos na escola. Mas os reprimem quando resolvem ser artistas. Assim, nem mesmo aqueles que têm tal "dom" são apoiados pela família.  No esporte, claro que isso não serve para o futebol masculino, pois que pais não gostariam de ter um Ronaldo no time, não é mesmo?

Família e escola amedrontam crianças e jovens, e tudo começa com as comparações. Quantos desistem de fazer algo de que têm vontade por não se acharem à altura de um irmão, primo, vizinho?  É fato que eu não tinha um bom desempenho no vôlei, mas poderia aprender. Afinal, esforço e dedicação podem superar as habilidades, não?

A escola, que deveria sempre estar preocupada com a educação de forma mais ampla possível, amplia todos esses traumas que brotam lá no seio familiar. Se os alunos e as alunas serão profissionais da música ou da dança, ou excelentes atletas, isso pouco importa; a escola deveria abrir caminhos, não os fechar. Ali a meritocracia não deveria ser bem-vinda, pois a escola é lugar para aprender com o erro e desenvolver habilidades.  

Por isso que muitas vezes não damos certo, e a infelicidade reverbera, contamina. Carregamos, ao longo dos anos, um peso de frustrações que nos impossibilitam de sonhar e, pior, acabam por nos padronizar e nos enquadrar em escalas de zero a dez. Mas nós, seres humanos, não nascemos para permanecer na mesmice; somos inquietos, queremos ampliar nossas possibilidades: rir, conviver, encontrar a felicidade que, com certeza, não está condicionada a um modelo, muito menos a um número. Se alguém não tem habilidade para ser engenheiro, isso não quer dizer que não possa somar e dividir. Se alguém não tem ginga para o samba, não quer dizer que não possa dançar. Se não tem ritmo ou é desafinado, também não quer dizer que não possa cantar, pois a voz não serve só para falar e gritar. E, como bem disse Tom Jobim, “no peito dos desafinados também bate um coração”.

Cantar no banheiro é só um começo para ssubirmos em um palco. Pegar um microfone ou dar toques em uma bola de vôlei são só alguns dos desafios para que alcancemos alguns objetivos (ou sonhos) que não estão, necessariamente, atrelados a uma profissão. Nenhum ser humano nasceu só para trabalhar. E, já que escola e família pouco atuam como agentes de democratização do aprendizado, necessitamos de espaços que se comprometam a fazer arte sem a valorar.  Preocupados em errar, deixamos de concretizar sonhos. Ao ter medo de julgamentos, deixamos de arriscar. E quem não arrisca, não vive; respira, mas não vive.

Eu sempre amei cantar, talvez por assumir a voz de outras pessoas que (en)cantavam um mundo, desentalando algo preso na garganta. Num coro da escola, no entanto, por mais que a maestrina apostasse em mim, achava minha voz de soprano muito fina. Nunca tive realmente aulas de música, pois eram tempos da famigerada Preparação para o Trabalho e, por ignorância, acreditava não cantar bem. Levei anos para ter coragem de soltar minha voz, mas voltei a cantar, como professora, em sala de aula. E não foram poucas as vezes que algum aluno me disse: “profe, o que tu faz aqui?”. Hoje me (en)canto em um espaço que me acolhe, não me julga. Lá encaro o medo do microfone, o medo do público. Lá não me preocupo com a régua. Lá, com pessoas de diferentes gerações, botamos nosso bloco na rua, abrimos ala, desconstruímos preconceitos e curamos traumas.

Não deveríamos ter medo de cantar, mas de perder a voz. Também não deveríamos ter medo de perder, só de não jogar. Não precisamos ser profissionais em tudo o que fazemos. Só do que precisamos é, como tão bem disse Chico César, “viver em estado de poesia”.






 

terça-feira, 25 de julho de 2023

Entre papéis e computadores

“Escritores sofrem. Todos os seres humanos sofrem.” Identifiquei-me com essas palavras de Moacyr Scliar na crônica “Estranhas Histórias de Escritores”. Nesta, o cronista discorre sobre a dificuldade de alguns escritores em escrever, principalmente, em colocar, no papel, as boas ideias que surgem. Que eles são surpreendentes e inusitados, isso não é novidade.

Identifiquei-me com o ato de criação – descrito pelo cronista – claro que cada um tem o seu e o meu parece um pouco com o de alguns. Há muito carrego comigo um papel, um caderno, um bloco, até mesmo um guardanapo, onde escrevo minhas ideias. O lugar pouco importa, afinal estamos sempre ávidos por ideias, quem pensa que elas não faltam está equivocado, e este é, segundo Sclyar, o sofrimento do escritor. Uma frase, uma situação, tudo pode gerar uma boa ideia que não é, necessariamente, uma grande ideia.

Houve uma época em que os textos nasciam, quase sempre, em um momento, sua criação era rápida, não constante, assim como um parto normal, sem muitas contrações e dilatações. Hoje parecem a vácuo e a fórceps, sofríveis. Às vezes faz-se necessária uma cesariana, uma intervenção, com direito, inclusive, a anestesia. Podem, portanto, iniciar em um dia e terminar meses depois.

Além disso, durante muito tempo o texto tinha que ser manuscrito. A mão era um instrumento, além da cabeça, lógico. Só o manuscrito me passava a ideia de algo singular, realmente meu. Sempre associei a literatura ao rascunho, à caligrafia – talvez porque datilografar era algo para secretária e digitar, coisa para poucos. Parece que o contato com o texto escrito a mão aproximava-nos do escritor. Ler os manuscritos de Evocações de Cruz e Sousa, por exemplo, quando estive na Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro, foi revelador. Ver os rabiscos, os vacilos, as substituições e reconhecer a caligrafia, em alguns momentos, ilegível, foi mais que um aprendizado. Ter acesso ao processo de criação do escritor é um momento único.

Hoje com a evolução da escrita e da imprensa, isso tornou-se impossível. Quem terá acesso a meus vacilos, minhas dúvidas, meus ajustes? No computador não deixamos rastros, deletar é mais que apagar. Quem salvaria todas as versões? Para quê? Os ajustes são automáticos. É fato, o papel está com os dias contados. Em menos de uma década, o indivíduo terá apenas um instrumento tecnológico a sua disposição para escrever. Nada de papel, guardanapo nem pensar. Como tudo tem dois lados, a correção tornou-se mais tranquila, afinal, no computador distanciamo-nos com mais facilidade do texto. O resultado parece não ser nosso.

E assim tudo foi se mecanizando e eu, por incrível que pareça, estou aqui, sentada em um Café, escrevendo em um papel que daqui a pouco irá para o lixo. Penso no lado positivo, as marcas não poderão me difamar, ninguém poderá dizer: “Ela disse isso, ao invés daquilo, houve um problema na transcrição”. Pularei etapas, conseguirei publicar o texto mais rápido, mas a mínima dúvida quanto a uma palavra não me dará a chance de uma réplica.       

Talvez, no futuro, nossos sofrimentos se acentuem, nessa época em que mais nada se cria, tudo se recria ou se copia, fica um pouco de medo, medo do (des)conhecido, medo de não conseguir mais escrever com minha mão, medo de mecanizar tudo, medo de parecer não errar, não vacilar, não corrigir, não aprofundar; medo de não ter um papel quando der uma pane na máquina. Medo de, de repente, ter que fazer uma inseminação in vitro, ou ainda adotar uma ideia. Enfim, medo de sofrer ainda mais.

 

Dezembro de 2011

quinta-feira, 8 de junho de 2023

Sobre (des)apegos

 

No fogo, o feijão com as folhas de louro borbulha. O cheirinho se espalha. Lembranças também borbulham em minha cabeça. No ano passado, minha irmã mais nova apareceu lá em casa com alguns galhos de louro: "deixa secar e guarda" - me disse. Ela se foi, e além da saudade, me deixou um saco cheio daquelas folhas medicinais.

 Impossível não me lembrar dela e de um provérbio que nossa mãe falava com frequência: "vão-se os anéis e ficam os dedos". Por isso, e por mais leveza, há um tempo iniciei sessões de desapego. Olho pros armários e estantes, e, aos poucos, vou me desapegando. Apesar de já ser desapegada, com o tempo passei a acumular, de roupas a livros. Não raras as vezes me questiono sobre quem vai cuidar de minha biblioteca, e de meu jardim? "Desapega, Rosane"- alguém sopra no meu ouvido.

E eu venho desapegando cada vez mais, e os armários estão esvaziando. Tem sobrado lugar na estante pra um livro novo. E a casa vai crescendo, acaba por se tornar grande demais. Desculpem, amigas escritoras e amigos escritores, mas eu me liberto, guardo com carinho na estante alguns livros que comprei ou ganhei autografados, alguns já lidos, mas se faz necessário abrir espaço. Empresto, troco, doo, sem problemas. Livros não são enfeites ou lembrancinhas, livros precisam circular, precisam ser lidos pra que, de repente, se imortalizem. Eu me sinto orgulhosa de encontrar meus livros em sebos.  Meus livros são livres pra encontrar um leitor.

Logo, é necessário mudar de postura, pois a vida é um centro cirúrgico, e nunca sabemos se sairemos de lá, e se voltaremos pra casa vivos.  Minha mãe, que trabalhou uma vida, num hospital, também falava sobre isso. Por isso temos que facilitar nossa vida, e o planeta agradece.

Menos coisas, menos bens materiais, pra sobrar mais espaço pra mais poesia, mais música, mais viagens, mais boas lembranças, e mais energia. Sem entulhos, sem apego a bens materiais, pois só precisamos mesmo é de uma muda de roupa que, às vezes, nem escolhemos.

As folhas de louro vão durar mais um tempo, as próximas talvez não tenham o mesmo sabor daquelas plantadas e colhidas por minha irmã. Mas a vida é assim mesmo, precisamos nos acostumar a novos sabores, novos cheiros, sendo o mofo sempre dispensável.

 

Rosane Cordeiro

 

Belém, 01/06/2023.

terça-feira, 7 de março de 2023

DISCURSO DE POSSE NA ACADEMIA DESTERRENSE DE LITERATURA EM 03 DE MARÇO DE 2023

 

Excelentíssima Senhora Vilca Marlene Merizio, Presidente da Academia Desterrense de Literatura, prezados confrades e prezadas confreiras da ADELIT e de outras academias, prezados novos acadêmicos, queridos familiares e amigos, boa noite! Agradeço a confiança dos escritores que tomam posse hoje e que confiaram em mim para representá-los. Primeiro, gostaria de dizer que este prédio me traz boas lembranças, pois aqui colei grau em Letras pela UFSC, uma segunda casa para mim, e que muito contribuiu para eu ser quem sou hoje. Segundo, ADELIT é uma academia desterrense, e falar de Desterro é remeter-se ao final do século XIX. Para quem nasceu no Largo Treze de Maio, e acompanha o crescimento desenfreado pelo qual a capital passa nas últimas décadas, sou invadida por um saudosismo: saudades do mar que estava sempre mais próximo, do carnaval ao redor da praça, dos pavões coloridos no jardim do palácio.

3 de março parece um dia qualquer, afinal, não é feriado. Mas foi nesse dia, no distante ano de 1687, que Domingos Jorge Velho foi contratado pelo governo colonial brasileiro para destruir o Quilombo dos Palmares. Outros fatos importantes aconteceram, em 1847 nasceu Alexander Graham Bell e, em 1939, Mahatma Gandhi iniciou um jejum em protesto ao governo da Índia. Já em 1963, a personagem Mônica de Mauricio de Sousa estreou na “Folha de S.Paulo”. São fatos de que poucos se lembram, mas contra os fatos não há argumento. Hoje, 3 de março, tomam posse nesta academia três mulheres Nelma, Rosane e Rosângela, e dois Luís, e ter mais mulheres do que homens assumindo uma cadeira, além de uma mulher na Presidência, indica um avanço, Ou seja, aos poucos nos tornamos protagonistas de nossas histórias. Aos poucos nos devolvem uma voz conquistada a duras penas.  

    Pós pandemia, sem encontros, sem saraus, sem lançamentos presenciais, aqui estamos para celebrar não somente nosso ingresso na Academia Desterrense de Literatura, mas a vida, pois (R)existimos. Como filha de operários, penso no orgulho que meus pais teriam ao me ver com este balandrau recebendo uma medalha. Acho que seu Otemar e a dona Mariazinha nunca imaginariam ter uma filha acadêmica, escritora, consolidando uma carreira e deixando um legado. E, como mulher, antecedendo o dia 8 de março, sinto que meu papel se acentua, pois precisamos de mulheres ocupando espaços que lhes foram negados, uma academia de letras é só um deles.  Bom destacar que janeiro de 2023 foi o mês mais violento para as mulheres dos últimos seis anos, logo, nossa luta só começou. E o que nós, futuros acadêmicos buscamos na ADELIT?

O florianopolitano Luiz Carlos de Sousa, que ocupará a cadeira 4,  influenciado por Nelson Rodrigues e Dalton Trevisan, busca conquistar leitores de todas as idades. Seu patrono, Custódio Francisco de Campos, nasceu em São José, e exerceu alguns cargos públicos. Escreveu em jornais e revistas. Era um conhecedor do Latim e do Alemão, contribuindo com algumas obras de valor, como “Falares Brusquenses”.

Já a historiadora Nelma Baldin, que ocupará a cadeira 22, nascida em Lauro Müller, com certeza busca algo além da sala de aula. Seu patrono Ernani Rosas nasceu em Desterro em 1886, mas viveu no Rio de Janeiro desde os 3 anos. Como simbolista, mesmo que tardiamente, foi cultuado pelos concretistas paulistas.

A poeta Rosangela Calza, que ocupará a cadeira 23, é autora de muitos  livros solos, tem mais de cinquenta antologias, com certeza busca continuar poetando por aí.  Seu patrono, Ildefonso Juvenal da Silva, nascido também em Desterro, em 1894, superou os problemas raciais através da educação. Com recursos próprios, publicou, com 20 anos, o livro “Contos Singelos”.

Luis Nilton Correa,  que ocupará a cadeira 24, antropólogo e historiador luso-brasileiro, é o autor do livro “Açorianos em São Domingos". Possivelmente Luis procura manter-se ativo, produzindo muito. Seu patrono, Jair Francisco Hamms, advogado, professor, jornalista, publicitário e escritor, publicou “Estórias de Gente e outras Estórias”, “O Vendedor de Maravilhas”, entre outros.

E eu, o que espero de um espaço que integra diferentes escritores, de diferentes gerações?  Antes de responder à pergunta, gostaria de dizer que ocupar a Cadeira 25, do professor Lauro Junkes me causa novas e boas lembranças. Lauro Junkes, nascido em Antônio Carlos, foi, além de um grande pesquisador, um homem bom, de família humilde que se aventurou pelas letras e que deixou seu legado. Foi meu orientador de doutorado e, quando eu quis me afastar por estar grávida de meu filho não me deixou, apoiando-me durante o curso e a qualificação.  Impossível descrever aqui toda a contribuição do professor Lauro para a Literatura Catarinense. Respondendo à pergunta, leio um trecho de um texto que publiquei no meu livro de poemas “O amor não cabe no peito” (Editora Insular, 2019).

"Espero que minha escrita sobreviva ao tempo e seja autossuficiente, afinal, a imortalidade é uma ilusão, pois a obra é superior a seu criador, a personagem sobrepõe-se ao narrador e ao autor. O eu lírico passarinha com Quintana. A obra, como uma criança, cresce, constrói-se, regenera-se.

Ao escritor de literatura cabe a transgressão, o anarquismo. Escritores e escritoras são desobedientes em potencial, para eles e elas não há limites estéticos, gráficos, linguísticos. Estão à margem, são loucos e incompreendidos, são péssimos comerciantes, e teimam em escrever sobre o que os outros não gostam. Têm atração pelo diferente. Tocam em feridas, criam polêmicas e às vezes se afogam ao remar contra a maré. E para quê? Para não serem apenas espectadores da vida real. Para exercerem, nas linhas e entrelinhas, a cidadania. Para serem solidários à vida e jamais sobreviverem como reles mortais.

    A arte assusta, agride, choca, mas liberta-nos de nós mesmos quando a empatia nos faz ser quem não somos, Sófocles não seria nada sem Édipo, nem Clarice sem Macabéa."

E nós, queridos acadêmicos, o que seríamos sem nossa obra?

 

Muito obrigada,

Que juntos possamos fazer a diferença!

 

Rosane Cordeiro



Desterro, 03 de março de 2023.




 

 

sábado, 18 de fevereiro de 2023

Saudades


     Foi há muito tempo. Na rua em que nasci havia três funerárias, uma no início, uma no meio, outra no fim, esta ao lado da casa de meus pais, onde hoje, por ironia, funciona uma casa de show. A casa de meus pais, que pertencia ao Hospital de Caridade, abrigava a família inteira, quando precisava de médico, pois era a única saída para quem realmente não tinha outra saída. 
    E, no Largo Treze de Maio nasci, cresci, aprendi a ser quem sou hoje. Aprendi a respeitar os mais velhos e os diferentes, muitos travestis tornaram-se nossos amigos afinal, aquela mesma casa do lado esquerdo, além de escritório de advocacia, de funerária, foi uma casa de travestis. Lá conhecemos o Edgar, uma senhora que se tornou mais do que uma vizinha, uma grande amiga da família. Lá aprendi a amar a natureza, pois havia alguns pés de abacate, de goiaba, de maracujá, de pitanga, de ameixa, onde não poucas vezes os moleques da redondeza davam uma passadinha. Brincávamos ora escorregando no pastinho, ora pendurados em árvores, pulávamos elástico, brincávamos de esconde-esconde, de queimei e amarelinha. Quanta saudade! 
    A rua, à noite, após o banho, era o espaço para os bate-papos, os namoricos, as brincadeiras, algumas até maliciosas e a Igreja era nosso único lazer. Observávamos o povo que subia e descia a ladeira – do paciente ao morador do morro. Ah! Como aprontávamos! 
    E a dona Mariazinha, minha mãe, além de ser uma grande conselheira e ter um coração de ouro, era a enfermeira da rua, dava injeção nos doentes, fazia curativos, tudo que fosse necessário para afagar as dores. Todos conheciam a dona Mariazinha. Foi uma mulher guerreira, criou oito filhos e a neta mais velha. Era da época em que as mulheres nasciam e cresciam para ser mães e isso ela fez com maestria. Só que como a minoria das mulheres da rua, trabalhava para dar, no mínimo, educação a seus filhos, pouco tempo tinha para conversas e carinho. Apesar disso, não deixou de ser meu espelho que, infelizmente, quebrou-se quando eu tinha meus 19 anos. Eu, uma universitária órfã de mãe, não foi fácil. Hoje também sinto saudades dos beijos que não dei, dos colos que não pedi, das discussões que não tivemos. 
    É a única saudade que frustra, aquela de não ter vivenciado algo que poderia ter acontecido. Minha mãe era mãe de muitos, sofrimento não lhe faltou, amizades também não. Teve sempre o melhor atendimento médico, um bom quarto particular, um bom enfermeiro, um excelente médico, estava sempre rodeada de pessoas que a admiravam, do padre ao doutor, da cozinheira ao técnico de enfermagem. Frei Carlos foi um grande amigo da família, daqueles padres de antigamente que frequentava a casa dos fieis, participava das novenas, aconselhava. Grande e bondoso, frei Carlos rezou a missa de corpo presente de minha mãe e ela teve um enterro de poucas pessoas, arrastou centenas de pessoas na subida do cemitério do Hospital de Caridade: vizinhos, parentes, moradores do morro, funcionários do hospital, não foram poucas as lágrimas, tampouco as dores de seus filhos, no entanto o carinho e o amor das pessoas por nossa mãe acalentou muito nossas dores. Que presente ser filha da dona Mariazinha! 
    E o hospital era também um pouco nosso lar. Eu e meus irmãos o conhecíamos como ninguém, da emergência ao necrotério, da igreja à lavanderia. O necrotério era um de nossos lugares preferidos. Que horror! Tudo era muito divertido, éramos ingênuos, crianças que brincavam sem muitos brinquedos, sem tecnologia, sem muita “atenção” dos pais, sem muita palavra de carinho. Sabíamos, no entanto, que éramos amados. E o seu Itamar, nossa! Respeitadíssimo. Alguns tinham medo da seriedade dele. Era sério demais, formal demais, não foi um grande amigo, mas foi um grande e completo pai, apesar de tão casmurro. 
    E naquela rua o comunismo parecia sair do papel. Talvez por isso tenha sido tão crente nessa ideologia durante toda minha vida. Aquela rua foi mais que um lugar, foi uma fonte de aprendizagem. Lá aprendemos a ser gente, lá víamos pobres e ricos lutando contra a morte, buscando a vida acima de tudo. Lá convivíamos, éramos os mais humildes da rua, pais assalariados, casa emprestada, mas na rua Menino Deus éramos uma família. Dos Maia aos Guedes, dos Santos aos Vidal, todos escorregavam no pastinho, este era um espaço democrático, dos moradores do morro aos da ladeira, éramos todos iguais, talvez por causa do excesso de funerárias. De nossa casa vimos a morte de um eletricista ao cair do poste, amigo de meu pai, uma paciente também se jogou do muro, sobreviveu felizmente, nada quebrou, só teve alguns arranhões. A fé no Senhor dos Passos parecia proteger-nos lá de cima. Presenciamos o incêndio da funerária, o incêndio do hospital, a queda de um caminhão na ladeira que matou uma família inteira, enfim, presenciamos o tempo todo, a morte e a vida subir e descer a ladeira. E fomos crescendo, nos formando, nos casando. Algumas famílias: os Santos, os Nascimento, a dona Mocinha, os Guedes ainda resistem no Largo 13 de Maio, que não é mais aquela rua de casas pequenas e familiares, afinal, ninguém mais escorrega no pastinho, e poucos aparecem na rua  agora repleta de clínicas, bares e casa de show. 
    Restam saudades da época em que havia um Hospital de Caridade em Florianópolis; saudades de escorregar no pastinho e cair de bunda na ladeira, saudades de ficar no muro apreciando a procissão de Senhor dos Passos e de fazer os tapetes para sua passagem, saudades da família Guedes, do grande poeta Sr. Gil, saudades de uma época que não volta mais, saudades da última casa do lado esquerdo, onde hoje é um estacionamento, lá fomos felizes, uma família de nove filhos mais os cachorros, as galinhas de angola, as árvores, os amigos, a fé. Saudades de uma Floripa que não existe mais. 

Maio de 2010