sábado, 14 de janeiro de 2023

Diz que fui por aí

 

Sem viagens, Cristóvão Colombo não chegaria à América, Charles Darwin não teria escrito a Origem das Espécies, Carmem Miranda não cantaria em Holloywood,  Pelé também não teria feito mil gols, e eu não teria comido sushi em um restaurante de Riga, ouvindo ao mesmo tempo  funk brasileiro e propaganda de um concerto de André Rieu. Se o ser humano não se aventurasse por outros mundos, e não tivesse a curiosidade pra criar, talvez Florianópolis fosse uma ilha inexplorada, nem manezinhos haveria. Não haveria pontes, e por lá também não sobrevoariam aviões, muito menos bruxas em suas vassouras voadoras. Sem quebra de fronteiras não comeríamos strogonoff, tampouco beberíamos cerveja ou vinho. Enfim, o mundo seria muito sem graça sem o “tudo junto e misturado”.

Já escrevi algo sobre isso antes: quanto menos grades, portões, fronteiras, melhor. Quanto mais quebras de padrões, melhor. Bom sair do protocolo também. Experiência é para viver. E experiência vivida leva a respeito ao meio, ao outro, a uma realidade diferente.  E nos enriquece, nos fortalecendo também. Aprendemos a viver com os opostos. E melhor ainda é vivenciar situações pra depois escolher uma delas, não nos amedrontar. Mas o fato é que nem todos têm essa sorte, quantas vezes as pessoas são obrigadas a viver uma vida toda, e a morrerem também no mesmo lugar? Há, no entanto, quem possa escolher e não usa esse poder pra sair da zona de conforto e viver outras situações diversas. Nós saímos do calor de Florianópolis pro frio de Riga, Letônia pra estar com a filha e conhecer algo novo, e muitas pessoas me disseram: “Frio, nem pensar, odeio”. Mas não vivenciar momentos não é uma questão de gosto, é como não gostar de algo sem nunca ter comido. Enfim, se já passou pelo frio, é louvável, se não o viveu é medo. Já pensou se todos morassem só em desertos? Ou só nos árticos? Eu voltarei a minha terra natal, mas quantos indivíduos têm essa opção? Nossos filhos e filhas precisam voar, como voaram tantos homens e mulheres que se tornaram cidadãos do mundo. Eles precisam sair de casa na certeza de que a porta estará aberta caso possam e queiram retornar. Fato é que as pessoas vivem bem, outras mal, por aqui e por aí. Aqui crianças, jovens, idosos fazem tudo que qualquer outro indivíduo faz em qualquer lugar do mundo.

Sempre tive o sonho de sair por aí, de ultrapassar fronteiras, nunca me contentei em estar em apenas num lugar. E não existe aprendizado maior do que pisar em outras terras, conhecer outras gentes, outras culturas, sair da zona de conforto e ter que se virar, e aceitar o erro como algo construtivo, falando outra língua além da materna, por exemplo. Ir da teoria à prática. Aprender a (sobre)viver no frio (ou no calor) excessivo, isso é a vida, pois ora ela esfria, ora ela aquece, mas o mundo nos abraça, de uma forma ou de outra.  Claro que sinto falta de meu país, mas do jeito que ele se encontra tenho medo do retorno, pois muito pior que o frio é a violência, o desrespeito, a insegurança.

Os flocos de neve que conhecia eram os pedaços de algodão que minha mãe colocava pra enfeitar as árvores de natal, ou ainda as cenas de comédias românticas, ou de filmes de Papai Noel, por isso nunca associei a neve a um congelador. Após dias encarando temperaturas em torno de -16, aprendi a respeitar o frio abaixo de zero, encarando-o como um desafio, como tantos na vida. Reconheço ainda mais minha pequenez nesse mundão, e o quão ilimitado é o aprendizado, pois há sempre um canto a conhecer, há sempre uma língua a aprender, há sempre uma comida a provar, há sempre uma fronteira a ultrapassar. Encontrar um equilíbrio entre o ser brasileiro e o viver, mesmo que temporariamente, nos países bálticos, é se colocar à prova e ter a certeza de que retornaremos mais fortes e mais tolerantes.

Por ora, se alguém perguntar por mim, diz que fui por aí, levando meu computador embaixo do braço.

 

Riga, 14 de janeiro de 2023!

 

 

 

 

 

terça-feira, 10 de janeiro de 2023

Hora de retrospectiva

 

Retornamos a Riga. Antes de dormir vi pela tevê do hostel um pouco do que já havia visto pelas redes sociais. Penso no meu país, na minha família, nos amigos, em meus alunos. Nenhuma novidade, já sabíamos que isso ocorreria. Um conhecido em Riga indignado disse que dará um gelo na família, apoiadora dos atos de 8 de janeiro de 2023 no Brasil. No facebook internautas voltam a se atacar, nem se distanciou o natal e as famílias também já travam novas brigas. 

Relembro 2014. Pela tevê assisti a cidadãos de bem de verde e amarelo mandarem a Presidenta tomar no c... Ninguém foi preso. Anos antes, um certo deputado disse a uma deputada que ela não merecia ser estuprada. E quem não se lembra dos adesivos em carros simulando o estupro da Presidenta? Também ninguém foi responsabilizado. Cidadãos de bem passaram a idealizar novamente a fala do mesmo deputado que, ao brincar com o “imbrincável”, dessa vez resolveu homenagear o Ustra, um dos maiores torturadores da história do país. E as notícias falsas passaram a se reproduzir como baratas: mamadeira de piroca, kit gay , ideologia de gênero. Quem não se lembra da placa em homenagem a Marielle Franco destruída por dois políticos que buscavam restaurar a ordem? E assim internautas doutoraram-se em todas as áreas do conhecimento, na linguística, por exemplo, questionaram inclusive o gênero das palavras: “presidenta”, como assim?  Professores foram acusados de doutrinadores e, do nada,  passamos a viver uma ameaça comunista, e a ser amedrontados pela ideia do país virar uma Venezuela. E até Paulo Freire foi questionado por quem sequer leu uma linha da “Educação do oprimido”. E foi assim que defensores da família, da pátria e de Deus fantasiaram-se com a bandeira do país.

Consolidou-se de vez, nos últimos anos, um país divido. E nenhuma classe escapou à loucura que se fortaleceu com a eleição daquele deputado que há anos já deveria ter sido preso por instigar a violência, fazer arminha e debochar da democracia. Apesar das muitas resistências, aceitamos o resultado das urnas convictos de que o estrago seria enorme. E foi, seguido de uma pandemia, que chegou pra mostrar nossa fragilidade e nos desafiar ainda mais.  E enquanto o mundo reforçava com urgência pesquisas pra desenvolver vacinas contra a COVID,  o presidente do país reforçava o negacionismo, questionava a Organização das Nações Unidas. E desgovernou fazendo da pandemia uma ameaça comunista, afinal, era só uma gripezinha, e quem tomasse a vacina viraria jacaré. E até hoje tem quem acredite estar com algum chip instalado em seu corpo. Chegou a vez das universidades serem alvejadas, e os cidadãos de bem passaram a questionar cientistas e médicos do mundo inteiro, recusaram-se, como o mito deles, a usar máscaras e a tomar a vacina. E os grupos de whats app tornaram-se um inferno, bombardeando os usuários com mensagens aterrorizadoras. Soube-se de um certo escritório de produção de notícias falsas instalado no próprio governo, mas novamente ninguém foi preso, ou responsabilizado. E o país entrou em um período de instabilidade, tornando-se um péssimo exemplo de democracia. Resultado: quase 700.000 brasileiros mortos por COVID, somados às muitas vítimas de balas perdidas, racismo e feminicídio.

E tudo em nome da pátria, da família, de Deus. E tudo contra a corrupção  que, como se sabe, não deixou de existir durante o governo do falso messias, salvador apenas de sua família, não foi à toa que aprovou o sigilo de 100 anos. Felizmente o mundo gira, e como ninguém soltou a mão de ninguém, não deixamos barato. Se recebíamos uma notícia falsa, devolvíamos duas provando a farsa. Alguns aliados do governo, apoiadores do golpe de 2015, também perceberam o barco furado em que estavam se metendo, e um movimento forte e resistente passou a lutar pela verdade. Uniram-se forças! Levantamos do caos pra reencontrar o país que nos foi tirado lentamente. E reelegemos o único severino que poderá, unindo forças de muitos lados, reerguer esta nação em frangalhos. Mas os cidadãos mostraram-se ainda mais intolerantes, discordando do resultado das eleições e, mesmo sem provas, acusam o atual Presidente de ladrão, sendo que seu único problema foi desconstruir a lógica do capitalismo selvagem: humanizou o país, proporcionando direitos iguais a homens e mulheres pobres e negros, fortaleceu o SUS e as universidades, investiu em moradia, aliou-se a grandes homens que fizeram deste país uma nação a caminho do desenvolvimento, sendo ovacionado mundo afora. Mas a ameaça comunista... aff! Pela primeira vez na história nasceu o pobre de direita, que se aliou a quem o escraviza.

E, apesar de voltarmos a esperançar, o ar esta semana voltou a pesar. Feridas estão expostas. Há uma ameaça constante de um golpe, isso que o ano acabou de começar. Triste ver de longe meu país ainda tão dividido. Parecemos voltar à estaca zero. Fato é que quanto mais viajamos, mais reconhecemos o potencial do Brasil, e de nosso povo também, fatos, no entanto, mostram-nos o quanto somos pequenos e frágeis, pois muitas vezes não conseguimos resolver a fúria da natureza, basta ver as enchentes que ocorreram há pouco no país, basta se lembrar da pandemia.  Aqui no leste europeu, a neve intensa faz estragos, no Brasil, o calor excessivo também se mostra às vezes destruidor. Por ora, só o que penso é no país armado que fica pra trás, mas que precisa se amar como nação, unindo forças, deixando a moralidade de lado, sempre se lembrando dos direitos conquistados em 1988.

Daqui a uma semana voltaremos ao Brasil na certeza de que construiremos uma nação mais humana, certos de que o patriotismo cego só serve pra desfile cívico, ou ainda, pra fascistas imporem seus muitos preconceitos e manterem a hipocrisia, vestidos com uma farda impecável e com uma arma em punho. O que conta mesmo na construção de um país de primeiro mundo são as três refeições na casa de cada brasileiro, o acesso à educação de qualidade, à saúde, à moradia (e blábláblá), assim, como o respeito às instituições democráticas, às mulheres e negros que, a duras penas, construíram e formaram lindamente  este país miscigenado, colorido, livre.

Precisamos de um país que não puna apenas pobres, negros, trabalhadores. Precisamos de um país que dê exemplos e que coloque na cadeia quem realmente lá deveria estar. Precisamos, no país, de instituições que nos representem. Não precisamos de salvadores da pátria, nós é que precisamos também fazer nossa parte. Precisamos começar, já passou da hora.

Riga, 9 de janeiro de 2023.


 

 


domingo, 1 de janeiro de 2023

Esperançar

     Após seis anos de muita instabilidade emocional, chegamos em 2023 confiantes e esperançosos, pois conseguimos virar duas páginas da história do Brasil: do golpe, seguida da eleição de 2018. Há, no entanto, uma sementinha de discórdia e ódio que, uma vez plantada e regada, pode crescer e se transformar em um perigoso pasto de erva daninha. É fato, apesar da conquista, não será fácil retomar conquistas que foram quase zeradas durante o desgoverno. Sem avanços na área social, o país retrocedeu a passos largos. Precisamos sonhar com os pés no chão, afinal alianças foram feitas e ainda estaremos rodeados de intolerantes.

    E sabemos que não é só no Brasil. Passamos nossa noite de virada em Riga, Letônia, e aqui a tensão tem nome: a Guerra da Ucrânia e Rússia que se prolonga. Logo, a divisão (que sempre houve, só estava adormecida) entre pessoas mais conservadoras e outras mais progressistas não está só no Brasil. Na França, na Itália, na Inglaterra, para não ficar só na América Latina, comunistas e capitalistas como são equivocamente estereotipados, travam outras guerras que circulam por todos os espaços. No Brasil víamos a bandeira verde e amarela para tudo quanto era canto, aqui se vê a bandeira da Ucrânia. 

    Assim, a neve que aqui cai como algodão, ao alcançar o chão torna-se dura, torna-se pedra. E no Brasil não é diferente, pois o sol que brilha pode provocar a morte. É como se a natureza, e só ela, conseguisse expressar o que todos sentimos e, o pior, como somos. Somos desequilíbrio e instabilidade. Somos teimosia e interesse. E somos egoísmo, pois acabamos reduzindo o mundo a nosso umbigo. Somos uma abstração que se materializa e se transforma em tempestades.

    Mas nós, felizmente, pensamos, e temos a capacidade de reavaliar nossos passos e mudar. Que assim façamos em 2023, que pensemos mais no coletivo. Bom lembrar que quem planta a semente torna-se menor que sua plantação. A solução é possível que seja plantar mais flores, mais árvores frutíferas, só assim para amenizar o efeito dessas ervas que, por ora, estarão adormecidas, mas que podem se empoderar, como ocorreu nos últimos anos, tudo vai depender do clima, e do respeito às intempéries que são inevitáveis.

    Hoje chove em Riga, mas a temperatura está suportável, em torno de 7 graus positivos. Pela janela vejo o gelo que, aos poucos, desaparece. No Brasil, em Brasília o tempo também parece mais agradável, 19 graus. É dia de posse do novo e velho Presidente Lula. Respiro fundo e sinto um alívio. Vejo pelas redes sociais que muitos amigos unem-se a outros amigos que vestem a camisa vermelha dos trabalhadores, e penso naquela verde e amarela (que ainda me recuso a usar) que representa o todo, um país continente que precisa unir forças para não se dividir ainda mais. Neste 1º de janeiro de 2023, vesti preto, porque é necessário ressignificar as cores.  E resta-nos esperançar, conscientes de que sem ação a esperança não deixa de ser um sonho.

Um excelente e colorido 2023!

 

 Riga, 1 de janeiro de 2023.