Um mês confinada em casa. Sem
finais de semana com amigos, música e poesia. Sem cair no samba, algo que fazia
ao menos uma vez por mês. Comprei um quebra-cabeça de mil peças da Monalisa,
uns quatro livros e assim tenho passado meus dias. Durante a lenta passagem do
tempo, preocupo-me, como a maioria dos trabalhadores, se haverá emprego, se o
salário vai chegar, se conseguirei pagar a escola do filho, se voltarei a ver
meus alunos e alunas ainda este ano, se minhas aulas digitais estão razoáveis e
blá, blá, blá. Não tem sido fácil, agora mais do que nunca, me reinventar atrás
de uma máquina, um acalanto é a troca textos e mensagens de amigos educadores
que ora se opõem à tentativa de se ensinar fora de uma sala de aula, ora curtem
virar youtubers e digitais influencers. E isso me tira o sono, porque não é de
hoje que penso na educação. Sou uma questionadora de como se dá o ensino e
nunca me contentei com a zona de conforto e, como eterno aprendiz, gosto de
desafios. Não é à toa que sempre me disseram: Rô, não inventa moda. Sou teimosa.
Ensinar neste país é sempre uma
tentativa, já sabemos desde sempre que aqui a educação é excludente. Então se
hoje em tempos de pandemia falta computador e internet para que alguns
brasileiros possam ter acesso ao ensino, há séculos faltam-lhes livros,
professores e escolas. Ou seria isso novidade agora em tempos de corona vírus? Desigualdade e meritocracia há muito dificultam
uma educação de qualidade, e até mesmo com iniciativas como as cotas, por
exemplo, permanecem as injustiças, afinal, não há uma uniformidade no processo
educacional, e o encerramos da pior forma possível, peneirando através de um
vestibular quem vai ou não frequentar um “bom” curso superior (ou ainda quem pode
ou não pagar). Um aluno de família de baixa renda que estuda no IFSC não tem
acesso à mesma educação que um aluno nas mesmas condições que cursa, por
exemplo, uma escola estadual em São Carlos. Ambos terão direito à mesma cota. A
desigualdade é muito cruel e histórica e não há interesse, em um país
capitalista, de mudar essa situação de desequilíbrio, afinal, ele o produz. Quem
“bem” formado abaixará a cabeça, aceitará a carteira de trabalho verde e
amarela, se sujeitará a horas-extras sem receber, aceitará votar no candidato
do empregador, quem?
Quando penso nos desafios, como professora
que sempre esteve em salas de aula de colégios públicos e privados, me
questiono sobre a autonomia necessária para que a educação aconteça. Tal
autonomia não se reduz ao professor, mas ao aluno também. Acredito há tempos
que a educação só acontece quando há, realmente, uma cumplicidade entre os
envolvidos e autonomia. Educação não pode produzir marionetes, tampouco
escravos, nem de um lado, nem de outro. Nossos alunos e alunas precisam buscar
o conhecimento e a aprendizagem precisa ser algo constante, independente de se
estar ou não em um espaço quadrado, perfilado e não raro as vezes, opressor. Temos
alunos que não sabem frequentar uma biblioteca, sequer sabem procurar um
capítulo em um sumário. Temos jovens que acreditam que escrever é fazer ctrlc
ctrlv. Alguns de nós, professores e
professoras, insistimos em um ensino quantitativo, seguimos o programa,
aplicamos provas que não avaliam quase nada, logo, fazemos de conta que
ensinamos, assim como alguns fazem de conta que medicam, que administram, que
governam. E não há grandes problemas com
isso, porque alguns desistirão no caminho, mas o candidato a alguma profissão poderá
fazer curso superior privado ou não, a distância ou não e se tornará mais um
com diploma de 3º grau completo a endossar as estatísticas. Outros poucos, com
acesso a uma educação de “excelência”, que se dará muito mais fora das grades e
portões da escola, ascenderão ao “paraíso”, de onde, na verdade, nunca saíram. Não
desviemos o foco agora, queridos companheiros e companheiras de trabalho, o
problema da educação – ainda – não é o acesso às redes, o problema é estrutural
e vem de séculos: a falta de interesse político em resolvê-lo, porque não é nada lucrativo, só a produção de
miséria é lucrativa para quem pretende se manter no poder e fazer parte daquela
minoria abastada e beneficiada pelo sistema.
Não há escolas sem alunos e sem
professores. É fato. Não seremos substituídos por máquinas. Não tenhamos medo
de nos aventurar pelas redes, gravando vídeos, editando-os, procurando levar um
pouco da sala de aula real a nossos alunos, eles merecem nosso respeito e
dignidade. Eles precisam de um norte. Alguns deles moram em casas com acesso a
tudo, inclusive a livros, a alguns resta um barraco sem água, ter acesso a um
celular ou computador, mesmo que em uma sala que é quarto e cozinha, é ainda
melhor do que ficar olhando para o teto que
desaba sobre suas cabeças. Definitivamente, nosso problema, em tempos de
covid-19, é o acesso, desde sempre, à vida. Se os livros nunca chegaram, que de
repente cheguem redes capazes de diminuir não só a solidão, mas a busca pelo
conhecimento.
Na minha estante, uma caixa com a tela da Monalisa
me olha com aquele seu olhar andrógeno e desconfiado. Na mesa, as peças acenam
para que eu as coloque uma a uma em seus lugares. Neste momento, a educação me
parece um quebra-cabeça de mil peças, não está fácil de encaixá-las, talvez
consiga, talvez não, mas tentarei.