terça-feira, 25 de julho de 2023

Entre papéis e computadores

“Escritores sofrem. Todos os seres humanos sofrem.” Identifiquei-me com essas palavras de Moacyr Scliar na crônica “Estranhas Histórias de Escritores”. Nesta, o cronista discorre sobre a dificuldade de alguns escritores em escrever, principalmente, em colocar, no papel, as boas ideias que surgem. Que eles são surpreendentes e inusitados, isso não é novidade.

Identifiquei-me com o ato de criação – descrito pelo cronista – claro que cada um tem o seu e o meu parece um pouco com o de alguns. Há muito carrego comigo um papel, um caderno, um bloco, até mesmo um guardanapo, onde escrevo minhas ideias. O lugar pouco importa, afinal estamos sempre ávidos por ideias, quem pensa que elas não faltam está equivocado, e este é, segundo Sclyar, o sofrimento do escritor. Uma frase, uma situação, tudo pode gerar uma boa ideia que não é, necessariamente, uma grande ideia.

Houve uma época em que os textos nasciam, quase sempre, em um momento, sua criação era rápida, não constante, assim como um parto normal, sem muitas contrações e dilatações. Hoje parecem a vácuo e a fórceps, sofríveis. Às vezes faz-se necessária uma cesariana, uma intervenção, com direito, inclusive, a anestesia. Podem, portanto, iniciar em um dia e terminar meses depois.

Além disso, durante muito tempo o texto tinha que ser manuscrito. A mão era um instrumento, além da cabeça, lógico. Só o manuscrito me passava a ideia de algo singular, realmente meu. Sempre associei a literatura ao rascunho, à caligrafia – talvez porque datilografar era algo para secretária e digitar, coisa para poucos. Parece que o contato com o texto escrito a mão aproximava-nos do escritor. Ler os manuscritos de Evocações de Cruz e Sousa, por exemplo, quando estive na Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro, foi revelador. Ver os rabiscos, os vacilos, as substituições e reconhecer a caligrafia, em alguns momentos, ilegível, foi mais que um aprendizado. Ter acesso ao processo de criação do escritor é um momento único.

Hoje com a evolução da escrita e da imprensa, isso tornou-se impossível. Quem terá acesso a meus vacilos, minhas dúvidas, meus ajustes? No computador não deixamos rastros, deletar é mais que apagar. Quem salvaria todas as versões? Para quê? Os ajustes são automáticos. É fato, o papel está com os dias contados. Em menos de uma década, o indivíduo terá apenas um instrumento tecnológico a sua disposição para escrever. Nada de papel, guardanapo nem pensar. Como tudo tem dois lados, a correção tornou-se mais tranquila, afinal, no computador distanciamo-nos com mais facilidade do texto. O resultado parece não ser nosso.

E assim tudo foi se mecanizando e eu, por incrível que pareça, estou aqui, sentada em um Café, escrevendo em um papel que daqui a pouco irá para o lixo. Penso no lado positivo, as marcas não poderão me difamar, ninguém poderá dizer: “Ela disse isso, ao invés daquilo, houve um problema na transcrição”. Pularei etapas, conseguirei publicar o texto mais rápido, mas a mínima dúvida quanto a uma palavra não me dará a chance de uma réplica.       

Talvez, no futuro, nossos sofrimentos se acentuem, nessa época em que mais nada se cria, tudo se recria ou se copia, fica um pouco de medo, medo do (des)conhecido, medo de não conseguir mais escrever com minha mão, medo de mecanizar tudo, medo de parecer não errar, não vacilar, não corrigir, não aprofundar; medo de não ter um papel quando der uma pane na máquina. Medo de, de repente, ter que fazer uma inseminação in vitro, ou ainda adotar uma ideia. Enfim, medo de sofrer ainda mais.

 

Dezembro de 2011