“Escritores sofrem. Todos os seres humanos sofrem.” Identifiquei-me com essas palavras de Moacyr Scliar na crônica “Estranhas Histórias de Escritores”. Nesta, o cronista discorre sobre a dificuldade de alguns escritores em escrever, principalmente, em colocar, no papel, as boas ideias que surgem. Que eles são surpreendentes e inusitados, isso não é novidade.
Identifiquei-me com o
ato de criação – descrito pelo cronista – claro que cada um tem o seu e o meu
parece um pouco com o de alguns. Há muito carrego comigo um papel, um caderno,
um bloco, até mesmo um guardanapo, onde escrevo minhas ideias. O lugar pouco
importa, afinal estamos sempre ávidos por ideias, quem pensa que elas não
faltam está equivocado, e este é, segundo Sclyar, o sofrimento do escritor. Uma
frase, uma situação, tudo pode gerar uma boa ideia que não é, necessariamente,
uma grande ideia.
Houve uma época em que
os textos nasciam, quase sempre, em um momento, sua criação era rápida, não
constante, assim como um parto normal, sem muitas contrações e dilatações. Hoje
parecem a vácuo e a fórceps, sofríveis. Às vezes faz-se necessária uma
cesariana, uma intervenção, com direito, inclusive, a anestesia. Podem,
portanto, iniciar em um dia e terminar meses depois.
Além disso, durante
muito tempo o texto tinha que ser manuscrito. A mão era um instrumento, além da
cabeça, lógico. Só o manuscrito me passava a ideia de algo singular, realmente
meu. Sempre associei a literatura ao rascunho, à caligrafia – talvez porque
datilografar era algo para secretária e digitar, coisa para poucos. Parece que
o contato com o texto escrito a mão aproximava-nos do escritor. Ler os
manuscritos de Evocações de Cruz e Sousa, por exemplo, quando estive na
Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro, foi revelador. Ver os
rabiscos, os vacilos, as substituições e reconhecer a caligrafia, em alguns
momentos, ilegível, foi mais que um aprendizado. Ter acesso ao processo de criação
do escritor é um momento único.
Hoje com a evolução da
escrita e da imprensa, isso tornou-se impossível. Quem terá acesso a meus
vacilos, minhas dúvidas, meus ajustes? No computador não deixamos rastros,
deletar é mais que apagar. Quem salvaria todas as versões? Para quê? Os ajustes
são automáticos. É fato, o papel está com os dias contados. Em menos de uma
década, o indivíduo terá apenas um instrumento tecnológico a sua disposição
para escrever. Nada de papel, guardanapo nem pensar. Como tudo tem dois lados,
a correção tornou-se mais tranquila, afinal, no computador distanciamo-nos com
mais facilidade do texto. O resultado parece não ser nosso.
E assim tudo foi se
mecanizando e eu, por incrível que pareça, estou aqui, sentada em um Café,
escrevendo em um papel que daqui a pouco irá para o lixo. Penso no lado
positivo, as marcas não poderão me difamar, ninguém poderá dizer: “Ela disse
isso, ao invés daquilo, houve um problema na transcrição”. Pularei etapas,
conseguirei publicar o texto mais rápido, mas a mínima dúvida quanto a uma
palavra não me dará a chance de uma réplica.
Talvez, no futuro,
nossos sofrimentos se acentuem, nessa época em que mais nada se cria, tudo se
recria ou se copia, fica um pouco de medo, medo do (des)conhecido, medo de não
conseguir mais escrever com minha mão, medo de mecanizar tudo, medo de parecer
não errar, não vacilar, não corrigir, não aprofundar; medo de não ter um papel
quando der uma pane na máquina. Medo de, de repente, ter que fazer uma
inseminação in vitro, ou ainda adotar uma ideia. Enfim, medo de sofrer
ainda mais.
Dezembro de 2011