terça-feira, 22 de setembro de 2020

Teatro do cotidiano

Que o homem gosta de espetáculo, isso não é novidade. Parece, às vezes, que nada mudou – da Grécia Antiga ao século XXI ainda acontecem fatos tão escabrosos quanto a luta de gladiadores: luta de MMA e farra do boi são alguns exemplos do quanto o indivíduo aprecia o sofrimento do outro. Há algumas semanas, a caminho de casa, eu e meu marido presenciamos uma cena digna de uma tragicomédia: um homem ameaçava se jogar de um edifício. Fiquei, a princípio, assustada, sem certezas. Deduzi o possível fato ao ver carros da PM, ambulâncias do Bombeiro, pessoas amontoadas, frente do prédio isolada com aquela faixa amarela, e um homem na sacada do 4º andar de um hotel. Alguns, como nós, passaram e rumaram para suas casas; outros assistiram à cena, felizes com o espetáculo gratuito; outros ainda torceram – talvez uma estratégia – para que o infeliz se jogasse. Meu marido não acreditava na façanha, dizia ser o prédio muito baixo, afinal, quem quer se jogar atira-se do 8º andar pra cima. Como dizem, tragédia pouca é bobagem. Depois de uma semana, soubemos que ele, um candidato a suicídio, não se jogou, mas comprovou-se a suspeita. Segundo um barbeiro que presenciou a cena, alguns telespectadores berravam da rua: “Se joga, corno. Se joga!”. Isso me fez lembrar daquelas cenas de filmes em que o imperador romano levantava o dedo sinalizando a vida ou a morte de um gladiador na arena. Poucas às vezes o povo escolhia a vida. Povo que é povo gosta de desgraça alheia. Adora um espetáculo. Bom espetáculo para os desocupados de plantão presenciar a morte de alguém; bom alimento também para os invejosos e covardes que não conseguem dar cabo de suas vidas medíocres, pois lhes falta coragem, alimentam-se, no entanto, da coragem do outro. Esses vivem infelizes, mais mortos do que vivos e, por isso, gostam da desgraça alheia. Talvez eu esteja sendo cruel. Não gostaria de julgar certas pessoas, apesar de já estar fazendo isso, mas celebrar a tragédia de um outro ser humano é horrível demais. Talvez porque tive, na família, dois suicídios: dois primos depressivos que foram corajosos dando fim em suas vidas. Um deles era um garoto de 28 anos, universitário, alegre, responsável, amigo, um bom filho. Deixou a mãe em luto eterno. Esse sofrimento, essa perda não é prêmio, é penalização. É uma prisão manter-se vivo, convivendo com a morte de outro ser, imagine de um filho. Logo, o suicídio é contraditório. Não conheço nenhuma outra atitude mais paradoxal do que se matar. Quem se mata tem coragem para a morte, mas medo para a vida e quem gosta de assistir à morte, é possível que não goste de assistir à vida. Sinceramente, meus queridos amigos, apesar de a vida ter seus finais às vezes infelizes, assim como nas novelas e nos romances, bom mesmo é presenciar a felicidade, mesmo que passageira. Bom seria se essas cenas ficassem nos palcos ou nas telas de novelas, ou ainda nas páginas de um romance qualquer. Melhor seria que na arte, que imita a vida, os seres humanos só morressem velhinhos sim, por que não? Julho/2012 (Florianópolis: Editora Insular, 2014)

domingo, 20 de setembro de 2020

Sobre Marias

 



Eu e Fátima Teles fomos convidadas para uma live do "Coletivo Mulheres que Escrevem", promovida, pela amiga e escritora em comum,  Ana Laurindo. Lá, trocamos Marias. Ela leu um trecho de seu livro "Lições de Maria", já eu li um de meus poemas do livro "De Choros e Velas". Marias ficcionais juntaram-se a outras Marias e filhas de Maria. Eu, do lado de cá, do sul do país, apoiada em Anita Garibaldi  e Antonieta de Barros, ela, do lado de lá, do nordeste, abraçada a Maria Tomásia, Maria Bonita e Maria Firmina dos Reis. Trocamos endereços e livros e nos reconhecemos em uma luta mais que feminina.

Moradora de Brejo Santo, Ceará, Fátima Teles é professora, assistente social, escritora e mestranda em  Políticas Públicas. Publicou também "Alumbramento", "A Cidade que  veio das Àguas" e "Brejo Santo: Revisitando o passado e construindo o presente" e hoje possui um canal no youtube em que apresenta e lê outros escritores, além de textos de sua autoria. Ler "Lições de Maria" (Fortaleza: Premius Editora, 2019) foi um acalanto. É uma leitura leve e necessária para antes, durante e após pandemia, afinal, no país inteiro, têm-se mantidos os casos de violência contra a mulher. 

Nove Marias empoderam a Maria professora que ensina a mulher a redescobrir-se. Enxerguei-me naquela Maria que, ao despertar, encontra força, espiritualidade, sabedoria, liberdade e aprende, com o silêncio e o tempo, a desapegar, não só de objetos, mas de pessoas, afinal, "ninguém é de ninguém". No livro, há Marias que se fragmentam para se consolidarem.  E Maria torna-se sincera e ela mesma, quando consegue discernir ilusão e realidade, mentira, falsidade e verdade. Passa a viver atenta e caminha sem olhar para trás. 

Como "tudo vale a pena quando a alma não é pequena", a Maria, da Fátima, de muitos sobrenomes e que está em cada uma de nós, é a construção de uma mulher que se  empodera, que chora com Clarice, no entanto, merece viver e amar como outra qualquer do planeta.  Com uma linguagem figurada e leve,  o feminismo perpassa, diria que até disfarçado na capa dura de tom lilás, pela luta que a mulher ainda tem que travar, primeiro com ela mesma, depois com o outro. Respinga, nas entrelinhas, um "se eu fosse eu", de Clarice Lispector, um "se", no livro, que  só se descobre lendo, porque "de boas intenções o inferno está cheio", não é mesmo, Maria de Fátima Araújo Teles?


São José da Terra Firme, 20 de setembro de 2020. 



sexta-feira, 18 de setembro de 2020

Eu, uma mandriona

 Realmente, eu devo ser uma pessoa muito preguiçosa, porque alguém que escolhe ser professor só pode ser muiiiiiiito preguiçoso, não é mesmo? Já ouvia que ser professor não era lá uma profissão muito valorizada, além disso, como estudante de escola e faculdade públicas, sabia que a luta era grande para se tentar valorizar o que o país pouco dava valor: a educação. Foi preguiça ler e escrever, por que não fiz algo braçal? 

Realmente, eu devo ser muito preguiçosa, porque, ainda no início da graduação, comecei a enfrentar uma sala de aula repleta de alunos. No primeiro contrato da prefeitura municipal de Florianópolis, saía do centro para dar aula na Escola Batista Pereira no Ribeirão da Ilha, logo depois, me inscrevi para professora substituta para a rede estadual. Como era jovem e com pouca experiência, só consegui aula de Inglês no Zulma Becker. Para Português havia muitos candidatos para poucas vagas.  Nem almoçava, pegava o busão da UFSC, descia na prainha, pegava outro busão para Santo Amaro da Imperatriz, quase sempre abarrotado de gente. Chegava na escola e comia um lanche que as merendeiras guardavam pra mim. Putz. Quanta preguiça! Por que não levava meu almoço?

Não parei mais, realmente, coisa de gente preguiçosa, por que não mudou de profissão? E só não foram muitas as escolas públicas, porque me efetivei cedo: Nereu Ramos, Ivo Silveira, Francisco Tolentino. Pouco fui professora "acetansa" no estado, por que só preguiçoso mesmo para se sujeitar a não ter quase direito nenhum, né? Ah! Preguiçoso e tanso. Ser professor efetivo também é sinal de preguiça, sabe como é, funcionário público que, segundo um tal ministro, é tudo parasita. E quando se filia a um sindicato então, hein! Péssima combinação!

E como todo preguiçoso gosta de trabalho manso e fácil,  paralelamente ao estado, ocupava o tempo restante na rede privada. E cá entre nós, todo professor é burro, então, precisava estudar, estudar e estudar. Fui fazer mestrado, doutorado e, detalhe, em sala de aula e grávida. Como? Ainda me perguntam? Professores não trabalham, gente, professoras muito menos. Simples assim. Por que elas não ficam em casa cuidando dos filhos e dos maridos? Bando de preguiçosas! E  essa história de preparar e fazer plano de aula, trabalhar em dois e três lugares para complementar o salário é conversa de esquerdista, sindicalista, comunista,  por que não trabalham, as mulheres, por amor à profissão? 

Realmente, sou muito preguiçosa, com três meses de férias durante esses anos todos, por que ainda não fui trabalhar, de graça pra algum político por puro patriotismo? Hoje, quem sabe,  eu seria uma assessora de um desses deputados aí que dão o sangue pelo "brazil", ou poderia, nas últimas eleições, ter me filiado a certo partido repleto de gente trabalhadeira e bem intencionada, que odeia mamadeira de piroca. Culpa de Freud e de um certo partido que governou para gente preguiçosa, tudo culpa de professor de humanas que não ensina a pescar.  

Tem que ser muito preguiçosa, tansa e burra, né? Por que diabos não dei uma de louca e me aposentei aos 33 anos com salário integral? 

Vai trabalhar, vagabunda. Lembra: nada está tão ruim que não possa piorar. 

São José da Terra Firme, 18 de setembro de 2020.