quinta-feira, 6 de outubro de 2022

Presente!


                                                                       Para Rafael, que [não sem dores] pariu a si próprio.

Tirara o espelho do quarto. Nas paredes havia só um suporte para o violão que vez ou outra ele dedilhava. Não ousava cantar. Detestava a própria voz de taquara rachada. Mas ouvia com atenção cada nota, cada acorde tristonho da canção: Será que ela é moça? Será que ela é triste? Será que é o contrário?

A melodia invadia-lhe a alma. Era uma forma de viajar para muito além daquele quarto, muito além daquela casa, muito além daquela vida. A letra o fazia pensar em tudo que pensaram para aquela criança, nas muitas imposições que acabou acatando. O nome Beatriz era só uma delas. Não se via mais Beatriz. Beatriz era só um retrato que aos poucos se apagava.

Era uma jovem tão linda, tão feminina, diziam. Os cabelos longos que lhe cobriam as costas ficaram na lembrança, nas fotos armazenadas no celular. Os seios ainda estavam ali, mas um dia deixariam de existir.  Se ele mesmo nunca se compreendera, como a mãe o compreenderia? Por que não era como as primas? Seria tão mais fácil ser o que esperavam dele.

Beatriz tinha o nome da avó, que fora a mulher mais bonita da cidade. Diziam que teria sido a miss Santa Catarina de 1978 se não preferisse casar‑se. Essa Beatriz morreu no parto da filha Luísa. E, vinte e tantos anos depois, Luísa deu o nome da mãe à filha única.

Enquanto Beatriz crescia, acostumou-se a ouvir que herdara a beleza da avó.  Aos nove anos, venceu um concurso de miss mirim. Os pais passaram a investir nela. Aulas de inglês, dança, teatro, música, passarela, etiqueta. Dois anos de aparelhos dentários, cuidados obsessivos com cabelos, unhas, pele, peso. Queriam-na miss Brasil.

Mas algo aconteceu com a menina. Do nada, Beatriz criou aversão àquilo tudo. Não conseguia mais olhar‑se no espelho. Recusava-se a ser boneca. Não queria maquiagem, nem coroas na cabeça. Preferia o azul ao rosa, tênis a sandálias, calça de agasalho a vestido. Amava esportes. Jogava futebol, vôlei, basquete. Nesses momentos conseguia extravasar.

A mãe e o pai não conseguiam entendê-la. A filha perdera-se deles entre um ano e outro. Virara desconhecida.

Os versos de Chico ecoavam em sua cabeça: Será que é de louça? Será que é de éter? Será que é loucura?

Beatriz pensava mesmo que enlouquecera.

Achando-a deprimida, o pai mandou-a à Disney, que ela odiou. A mãe comprou-lhe roupas novas, mais próximas dos novos gostos dela. A fase difícil da adolescência ia passar, diziam. Mas não passou. Não era fase, era metamorfose.

Não se lembrava de quando exatamente se percebeu outro. Tinha vaga memória de uma discussão com a mãe aos 10 anos. Estavam em uma loja. Queria muito comprar uma roupa e a mãe sequer a deixou provar. Aquilo era roupa de menino.

Quando veio a adolescência, os seios cresceram, o corpo arredondou. E o sangue começou a escorrer-lhe de dentro. Sentia-se violentado.

Encolheu-se! Escondeu-se. Na escola passou a sentar no canto da última fileira. Afastou-se das colegas. Observava ao longo dos anos aqueles corpos se transformarem e se adequarem a um padrão.

Não tinha certeza de nada, nem queria ter. Só sabia que jamais poderia dar o que queriam dele. Não tinha como. Não queria ser a princesa, a Barbie, a filha que um dia o pai levaria ao altar.

Um dia haveria de colocar um espelho no quarto. Ao olhar-se nele, enxergaria o outro que sempre esteve tão distante, mas tão próximo. E conseguiria responder às perguntas na canção: Será que é uma estrela? Será que é mentira? Será que é comédia?

Na última semana de aula do terceiro ano, entrou na sala de aula certo dos próximos passos. Quando a professora chamou Beatriz, ele pôs-se de pé e respondeu:

– Rafael, presente!