Para Rafael, que [não sem dores] pariu a si próprio.
Tirara o espelho do
quarto. Nas paredes havia só um suporte para o violão que vez ou outra ele dedilhava.
Não ousava cantar. Detestava a própria voz de taquara rachada. Mas ouvia com
atenção cada nota, cada acorde tristonho da canção: Será que ela é moça? Será
que ela é triste? Será que é o contrário?
A melodia invadia-lhe a
alma. Era uma forma de viajar para muito além daquele quarto, muito além
daquela casa, muito além daquela vida. A letra o fazia pensar em tudo que pensaram
para aquela criança, nas muitas imposições que acabou acatando. O nome Beatriz
era só uma delas. Não se via mais Beatriz. Beatriz era só um retrato que aos
poucos se apagava.
Era uma jovem tão linda,
tão feminina, diziam. Os cabelos longos que lhe cobriam as costas ficaram na
lembrança, nas fotos armazenadas no celular. Os seios ainda estavam ali, mas um
dia deixariam de existir. Se ele mesmo
nunca se compreendera, como a mãe o compreenderia? Por que não era como as
primas? Seria tão mais fácil ser o que esperavam dele.
Beatriz tinha o nome da
avó, que fora a mulher mais bonita da cidade. Diziam que teria sido a miss
Santa Catarina de 1978 se não preferisse casar‑se. Essa Beatriz morreu no parto
da filha Luísa. E, vinte e tantos anos depois, Luísa deu o nome da mãe à filha
única.
Enquanto Beatriz
crescia, acostumou-se a ouvir que herdara a beleza da avó. Aos nove anos, venceu um concurso de miss mirim.
Os pais passaram a investir nela. Aulas de inglês, dança, teatro, música,
passarela, etiqueta. Dois anos de aparelhos dentários, cuidados obsessivos com
cabelos, unhas, pele, peso. Queriam-na miss Brasil.
Mas algo aconteceu com
a menina. Do nada, Beatriz criou aversão àquilo tudo. Não conseguia mais olhar‑se
no espelho. Recusava-se a ser boneca. Não queria maquiagem, nem coroas na
cabeça. Preferia o azul ao rosa, tênis a sandálias, calça de agasalho a
vestido. Amava esportes. Jogava futebol, vôlei, basquete. Nesses momentos
conseguia extravasar.
A mãe e o pai não
conseguiam entendê-la. A filha perdera-se deles entre um ano e outro. Virara
desconhecida.
Os versos de Chico ecoavam
em sua cabeça: Será que é de louça? Será que é de éter? Será que é loucura?
Beatriz pensava mesmo que
enlouquecera.
Achando-a deprimida, o
pai mandou-a à Disney, que ela odiou. A mãe comprou-lhe roupas novas, mais
próximas dos novos gostos dela. A fase difícil da adolescência ia passar,
diziam. Mas não passou. Não era fase, era metamorfose.
Não se lembrava de
quando exatamente se percebeu outro. Tinha vaga memória de uma discussão com a
mãe aos 10 anos. Estavam em uma loja. Queria muito comprar uma roupa e a mãe sequer
a deixou provar. Aquilo era roupa de menino.
Quando veio a adolescência,
os seios cresceram, o corpo arredondou. E o sangue começou a escorrer-lhe de
dentro. Sentia-se violentado.
Encolheu-se!
Escondeu-se. Na escola passou a sentar no canto da última fileira. Afastou-se
das colegas. Observava ao longo dos anos aqueles corpos se transformarem e se
adequarem a um padrão.
Não tinha certeza de
nada, nem queria ter. Só sabia que jamais poderia dar o que queriam dele. Não
tinha como. Não queria ser a princesa, a Barbie, a filha que um dia o pai
levaria ao altar.
Um dia haveria de colocar
um espelho no quarto. Ao olhar-se nele, enxergaria o outro que sempre esteve
tão distante, mas tão próximo. E conseguiria responder às perguntas na canção: Será
que é uma estrela? Será que é mentira? Será que é comédia?
Na última semana de
aula do terceiro ano, entrou na sala de aula certo dos próximos passos. Quando
a professora chamou Beatriz, ele pôs-se de pé e respondeu:
– Rafael, presente!