domingo, 20 de novembro de 2022

Sobre Consciência



Procuro uma receita  de torta salgada, que há anos não fazia, para levar para o sarau Tertúlia dos Antúrios, dos nossos amigos Fredy e Elinete. Além dos ovos e do leite, a receita sugere que acrescente 13 colheres de trigo. Uma ansiedade toma conta do momento, afinal, preciso levar também algo novo para ler que seja especial para este dia que antecede o Dia da Consciência Negra, e esse número me inspira. 

Volto ao 13 e a seus múltiplos significados: o 3 em 1, a Santíssima Trindade, o partido dos trabalhadores e o novo governo que se iniciará em 2023 e que, de mãos dadas a tantos outros partidos, têm a luta contra o racismo como bandeira,  e, consequentemente, a expansão da Consciência Negra a todos os dias do ano. Relembro o 13 de maio de 1988 e desembarco neste novembro de 2022, que antecede o Dia da Consciência Negra, data de morte de Zumbi, carregada de expectativa, mas ainda invadida pelos versos questionadores de Castro Alves: por onde anda o Deus dos desgraçados?

Há quem questione o dia da Consciência Negra justificando que nenhum branco sai por aí levantando a bandeira 100% branco, por exemplo. E é justamente por isso que ele se faz tão necessário, pois esse dia é mais para os que se enxergam brancos do que os negros, é um dia para que nós, brasileiros, percebamos que este país nada seria sem as contribuições vindas da África, e que somos um povo miscigenado. Ponto. É isso. Somos um nós colorido e diversificado, e este país não seria o que é sem uma história de dor, escravidão e estupro que nos assombra, mas a qual não podemos negar. Somos filhos e filhas da violência racial, em especial contra negros e indígenas. Todas as vidas importam, mas que país mata tantos cidadãos negros?

E gostaria de destacar aqui o Consciência tranquila de Cruz e Sousa. É uma prosa poética (ou poema em prosa) pouco lida e pouco conhecida, texto de difícil leitura não só pela estrutura, mas pela abordagem do tema: a memória de um senhor de escravos que, à beira da morte, lembra-se, com a consciência tranquila, de atos que cometeu: o negro de cem anos, morfético a quem arrancou os dois olhos, a negra mãe que morreu louca abraçada ao filho, os negros que mandou enforcar, os negros que de desespero e aflição rasgaram o próprio ventre, a negra grávida que, de ciúme, mandou chicotear. E ele se questiona: “Remorso? De quê?”. E aterrissando com os dois pés nesta segunda década do século XXI questiono: será que sente remorso o policial que sufocou George Floyd? Sentem remorsos os policiais rodoviários que mataram Genivaldo? E da morte de Kathlen e seu bebê, será que alguém tem remorso?

A resposta está justamente na palavra consciência: 1. sentimento ou conhecimento que permite ao ser humano vivenciar, experimentar ou compreender aspectos ou a totalidade de seu mundo interior, 2. sentido ou percepção que o ser humano possui do que é moralmente certo ou errado em atos e motivos individuais. Ou seja, falta ao agressor reconhecer-se parte dessa parcela da população discriminada há séculos, tenha ele o sobrenome que tiver, seja ele de onde for, pouco importa. More ele na quebrada, ou no asfalto.  E mais uma pergunta surge: por quê? Como cidadãos que se dizem cristãos mantêm-se sem remorso ao cometer atos tão cruéis? E a resposta é, obviamente, a falta de educação no sentido mais profundo e amplo da palavra. Ninguém nasce racista. O brasileiro precisa reconhecer-se um miscigenado, precisa entender que, apesar do sobrenome às vezes europeu, carrega no sangue o continente africano. E o complexo de inferioridade se consolida quando o brasileiro se envergonha de ser o que é, apagando uma história que, apesar de triste, trouxe-lhe uma cultura inigualável. O brasileiro precisa se orgulhar da arte que faz, do sincretismo religioso que o forma, jamais o negar,  enxergar-se belo nos traços que o denunciam ora isso ora aquilo, ora um mistura bem misturada. 

24 de novembro é dia do nascimento do poeta Cruz e Sousa, tachado de ser um negro de alma branca, ou ainda de ser um negro que queria ser branco. Um dia após a morte de Zumbi, a história desses dois grandes homens negros nos faz questionar ainda mais os últimos anos de retrocesso em que vivemos, e por isso reforço os dias 20 e 24 de novembro, marcos de morte e nascimento desses dois homens negros que, além de exemplificarem a dor de toda uma existência, fortalecem uma luta que deve ser de todos nós cidadãos brasileiros. 

São José da Terra Firme, 21 de novembro de 2022.

sábado, 12 de novembro de 2022

Sobre escolhas e pertencimento

 

Saí da clínica agradecida. Minha mãe não chegou à idade que tenho hoje. E por isso sempre digo às amigas que aniversariar é um presente, não um fardo. Quantas pessoas gostariam de viver mais para se desculparem dos tropeços dados, ou para fazer o que não fizeram durante uma vida às vezes curta, outras vezes aparentemente longa e pesada demais.

Ao atravessar a Rua Menino Deus, é impossível não me lembrar de meus pais trilhando aquele mesmo caminho. Na esquina, vejo meu pai de sandália de dedo, de calça um pouco mais curta e com uma camisa clara e com um cigarro na mão, conversando com os amigos na venda do Sr. João da Maia. No rosto um sorriso que raramente nos mostrava. Minha mãe está a caminho da feira, vai comprar linguiça Blumenau para o feijão. E a criançada escorrega pelo pastinho do hospital, enquanto pacientes sobem e descem a procura da saúde perdida. A funerária está ali, com caixões na entrada esperando o próximo a partir. Esbarro no Sr Gil Guedes que me pergunta: “Rosaninha, onde vás?”. Rota de pertencimento: recordações de um tempo que, embora passado, está presente todas as vezes que caminho por Florianópolis, minha terra natal. 

Há alguns anos tenho feito o que me dá alegria: tocar pandeiro numa roda de choro, abrir a casa para amigos que me acolhem e me acalantam, viajar para conhecer outros espaços e gentes, escrever e ler para quem me quiser ler e ouvir, sorrir mais e me preocupar menos, cada vez menos, com bens materiais. Hoje eu escolho com quem estar, o que fazer, aonde ir. E tenho prioridades de que não abro mão: comer e beber com os meus é uma delas. De repente sou invadida por uma tristeza ao ouvir a Gal cantando “Força estranha”, e me dou conta de que aquele agudo e aquela afinação eu não terei mais a oportunidade de ver e ouvir ao vivo. Por que não fui ao último show dela em Floripa, por quê? É isso, queridos amigos e queridas amigas, a vida é feita de escolhas, e vale sempre esse clichê que, por ser clichê, não lhe damos a devida importância.

Às 10:30 entro num café para quebrar o desjejum, grata à vida que tenho e às escolhas que fiz, apesar de algumas frustrações. Sento e peço um espresso pequeno e um pãozinho com queijo e tomate. E resolvo escrever este texto que só agora à noite nasce, pois há uma força estranha no ar e eu não posso parar.


quinta-feira, 6 de outubro de 2022

Presente!


                                                                       Para Rafael, que [não sem dores] pariu a si próprio.

Tirara o espelho do quarto. Nas paredes havia só um suporte para o violão que vez ou outra ele dedilhava. Não ousava cantar. Detestava a própria voz de taquara rachada. Mas ouvia com atenção cada nota, cada acorde tristonho da canção: Será que ela é moça? Será que ela é triste? Será que é o contrário?

A melodia invadia-lhe a alma. Era uma forma de viajar para muito além daquele quarto, muito além daquela casa, muito além daquela vida. A letra o fazia pensar em tudo que pensaram para aquela criança, nas muitas imposições que acabou acatando. O nome Beatriz era só uma delas. Não se via mais Beatriz. Beatriz era só um retrato que aos poucos se apagava.

Era uma jovem tão linda, tão feminina, diziam. Os cabelos longos que lhe cobriam as costas ficaram na lembrança, nas fotos armazenadas no celular. Os seios ainda estavam ali, mas um dia deixariam de existir.  Se ele mesmo nunca se compreendera, como a mãe o compreenderia? Por que não era como as primas? Seria tão mais fácil ser o que esperavam dele.

Beatriz tinha o nome da avó, que fora a mulher mais bonita da cidade. Diziam que teria sido a miss Santa Catarina de 1978 se não preferisse casar‑se. Essa Beatriz morreu no parto da filha Luísa. E, vinte e tantos anos depois, Luísa deu o nome da mãe à filha única.

Enquanto Beatriz crescia, acostumou-se a ouvir que herdara a beleza da avó.  Aos nove anos, venceu um concurso de miss mirim. Os pais passaram a investir nela. Aulas de inglês, dança, teatro, música, passarela, etiqueta. Dois anos de aparelhos dentários, cuidados obsessivos com cabelos, unhas, pele, peso. Queriam-na miss Brasil.

Mas algo aconteceu com a menina. Do nada, Beatriz criou aversão àquilo tudo. Não conseguia mais olhar‑se no espelho. Recusava-se a ser boneca. Não queria maquiagem, nem coroas na cabeça. Preferia o azul ao rosa, tênis a sandálias, calça de agasalho a vestido. Amava esportes. Jogava futebol, vôlei, basquete. Nesses momentos conseguia extravasar.

A mãe e o pai não conseguiam entendê-la. A filha perdera-se deles entre um ano e outro. Virara desconhecida.

Os versos de Chico ecoavam em sua cabeça: Será que é de louça? Será que é de éter? Será que é loucura?

Beatriz pensava mesmo que enlouquecera.

Achando-a deprimida, o pai mandou-a à Disney, que ela odiou. A mãe comprou-lhe roupas novas, mais próximas dos novos gostos dela. A fase difícil da adolescência ia passar, diziam. Mas não passou. Não era fase, era metamorfose.

Não se lembrava de quando exatamente se percebeu outro. Tinha vaga memória de uma discussão com a mãe aos 10 anos. Estavam em uma loja. Queria muito comprar uma roupa e a mãe sequer a deixou provar. Aquilo era roupa de menino.

Quando veio a adolescência, os seios cresceram, o corpo arredondou. E o sangue começou a escorrer-lhe de dentro. Sentia-se violentado.

Encolheu-se! Escondeu-se. Na escola passou a sentar no canto da última fileira. Afastou-se das colegas. Observava ao longo dos anos aqueles corpos se transformarem e se adequarem a um padrão.

Não tinha certeza de nada, nem queria ter. Só sabia que jamais poderia dar o que queriam dele. Não tinha como. Não queria ser a princesa, a Barbie, a filha que um dia o pai levaria ao altar.

Um dia haveria de colocar um espelho no quarto. Ao olhar-se nele, enxergaria o outro que sempre esteve tão distante, mas tão próximo. E conseguiria responder às perguntas na canção: Será que é uma estrela? Será que é mentira? Será que é comédia?

Na última semana de aula do terceiro ano, entrou na sala de aula certo dos próximos passos. Quando a professora chamou Beatriz, ele pôs-se de pé e respondeu:

– Rafael, presente!