Procuro uma receita de torta salgada, que há anos não fazia, para levar para o sarau Tertúlia dos Antúrios, dos nossos amigos Fredy e Elinete. Além dos ovos e do leite, a receita sugere que acrescente 13 colheres de trigo. Uma ansiedade toma conta do momento, afinal, preciso levar também algo novo para ler que seja especial para este dia que antecede o Dia da Consciência Negra, e esse número me inspira.
Volto ao 13 e a seus múltiplos significados: o 3 em 1, a Santíssima Trindade, o partido dos trabalhadores e o novo governo que se iniciará em 2023 e que, de mãos dadas a tantos outros partidos, têm a luta contra o racismo como bandeira, e, consequentemente, a expansão da Consciência Negra a todos os dias do ano. Relembro o 13 de maio de 1988 e desembarco neste novembro de 2022, que antecede o Dia da Consciência Negra, data de morte de Zumbi, carregada de expectativa, mas ainda invadida pelos versos questionadores de Castro Alves: por onde anda o Deus dos desgraçados?
Há quem questione o dia da Consciência Negra justificando que nenhum
branco sai por aí levantando a bandeira 100% branco, por exemplo. E é justamente por isso
que ele se faz tão necessário, pois esse dia é mais para os que se
enxergam brancos do que os negros, é um dia para que nós, brasileiros,
percebamos que este país nada seria sem as contribuições vindas da África, e
que somos um povo miscigenado. Ponto. É isso. Somos um nós colorido e diversificado, e este país não
seria o que é sem uma história de dor, escravidão e estupro que nos assombra,
mas a qual não podemos negar. Somos filhos e filhas da violência racial, em
especial contra negros e indígenas. Todas as vidas importam, mas que país
mata tantos cidadãos negros?
E gostaria de destacar aqui o Consciência tranquila de Cruz e Sousa. É uma prosa
poética (ou poema em prosa) pouco lida e pouco conhecida, texto de difícil leitura não só pela
estrutura, mas pela abordagem do tema: a memória de um senhor de escravos que,
à beira da morte, lembra-se, com a consciência tranquila, de atos que cometeu: o
negro de cem anos, morfético a quem arrancou os dois olhos, a negra mãe que
morreu louca abraçada ao filho, os negros que mandou enforcar, os negros que de
desespero e aflição rasgaram o próprio ventre, a negra grávida que, de ciúme,
mandou chicotear. E ele se questiona: “Remorso? De quê?”. E aterrissando com os dois pés nesta segunda década do século XXI questiono: será que sente remorso o policial que sufocou George Floyd?
Sentem remorsos os policiais rodoviários que mataram Genivaldo? E da morte de
Kathlen e seu bebê, será que alguém tem remorso?
A resposta está justamente na palavra consciência: 1. sentimento ou conhecimento que permite ao ser humano vivenciar, experimentar ou compreender aspectos ou a totalidade de seu mundo interior, 2. sentido ou percepção que o ser humano possui do que é moralmente certo ou errado em atos e motivos individuais. Ou seja, falta ao agressor reconhecer-se parte dessa parcela da população discriminada há séculos, tenha ele o sobrenome que tiver, seja ele de onde for, pouco importa. More ele na quebrada, ou no asfalto. E mais uma pergunta surge: por quê? Como cidadãos que se dizem cristãos mantêm-se sem remorso ao cometer atos tão cruéis? E a resposta é, obviamente, a falta de educação no sentido mais profundo e amplo da palavra. Ninguém nasce racista. O brasileiro precisa reconhecer-se um miscigenado, precisa entender que, apesar do sobrenome às vezes europeu, carrega no sangue o continente africano. E o complexo de inferioridade se consolida quando o brasileiro se envergonha de ser o que é, apagando uma história que, apesar de triste, trouxe-lhe uma cultura inigualável. O brasileiro precisa se orgulhar da arte que faz, do sincretismo religioso que o forma, jamais o negar, enxergar-se belo nos traços que o denunciam ora isso ora aquilo, ora um mistura bem misturada.
24 de novembro é dia do nascimento do poeta Cruz e Sousa, tachado de ser um negro de alma branca, ou ainda de ser um negro que queria ser branco. Um dia após a morte de Zumbi, a história desses dois grandes homens negros nos faz questionar ainda mais os últimos anos de retrocesso em que vivemos, e por isso reforço os dias 20 e 24 de novembro, marcos de morte e nascimento desses dois homens negros que, além de exemplificarem a dor de toda uma existência, fortalecem uma luta que deve ser de todos nós cidadãos brasileiros.
São José da Terra Firme, 21 de novembro de 2022.