sábado, 18 de fevereiro de 2023

Saudades


     Foi há muito tempo. Na rua em que nasci havia três funerárias, uma no início, uma no meio, outra no fim, esta ao lado da casa de meus pais, onde hoje, por ironia, funciona uma casa de show. A casa de meus pais, que pertencia ao Hospital de Caridade, abrigava a família inteira, quando precisava de médico, pois era a única saída para quem realmente não tinha outra saída. 
    E, no Largo Treze de Maio nasci, cresci, aprendi a ser quem sou hoje. Aprendi a respeitar os mais velhos e os diferentes, muitos travestis tornaram-se nossos amigos afinal, aquela mesma casa do lado esquerdo, além de escritório de advocacia, de funerária, foi uma casa de travestis. Lá conhecemos o Edgar, uma senhora que se tornou mais do que uma vizinha, uma grande amiga da família. Lá aprendi a amar a natureza, pois havia alguns pés de abacate, de goiaba, de maracujá, de pitanga, de ameixa, onde não poucas vezes os moleques da redondeza davam uma passadinha. Brincávamos ora escorregando no pastinho, ora pendurados em árvores, pulávamos elástico, brincávamos de esconde-esconde, de queimei e amarelinha. Quanta saudade! 
    A rua, à noite, após o banho, era o espaço para os bate-papos, os namoricos, as brincadeiras, algumas até maliciosas e a Igreja era nosso único lazer. Observávamos o povo que subia e descia a ladeira – do paciente ao morador do morro. Ah! Como aprontávamos! 
    E a dona Mariazinha, minha mãe, além de ser uma grande conselheira e ter um coração de ouro, era a enfermeira da rua, dava injeção nos doentes, fazia curativos, tudo que fosse necessário para afagar as dores. Todos conheciam a dona Mariazinha. Foi uma mulher guerreira, criou oito filhos e a neta mais velha. Era da época em que as mulheres nasciam e cresciam para ser mães e isso ela fez com maestria. Só que como a minoria das mulheres da rua, trabalhava para dar, no mínimo, educação a seus filhos, pouco tempo tinha para conversas e carinho. Apesar disso, não deixou de ser meu espelho que, infelizmente, quebrou-se quando eu tinha meus 19 anos. Eu, uma universitária órfã de mãe, não foi fácil. Hoje também sinto saudades dos beijos que não dei, dos colos que não pedi, das discussões que não tivemos. 
    É a única saudade que frustra, aquela de não ter vivenciado algo que poderia ter acontecido. Minha mãe era mãe de muitos, sofrimento não lhe faltou, amizades também não. Teve sempre o melhor atendimento médico, um bom quarto particular, um bom enfermeiro, um excelente médico, estava sempre rodeada de pessoas que a admiravam, do padre ao doutor, da cozinheira ao técnico de enfermagem. Frei Carlos foi um grande amigo da família, daqueles padres de antigamente que frequentava a casa dos fieis, participava das novenas, aconselhava. Grande e bondoso, frei Carlos rezou a missa de corpo presente de minha mãe e ela teve um enterro de poucas pessoas, arrastou centenas de pessoas na subida do cemitério do Hospital de Caridade: vizinhos, parentes, moradores do morro, funcionários do hospital, não foram poucas as lágrimas, tampouco as dores de seus filhos, no entanto o carinho e o amor das pessoas por nossa mãe acalentou muito nossas dores. Que presente ser filha da dona Mariazinha! 
    E o hospital era também um pouco nosso lar. Eu e meus irmãos o conhecíamos como ninguém, da emergência ao necrotério, da igreja à lavanderia. O necrotério era um de nossos lugares preferidos. Que horror! Tudo era muito divertido, éramos ingênuos, crianças que brincavam sem muitos brinquedos, sem tecnologia, sem muita “atenção” dos pais, sem muita palavra de carinho. Sabíamos, no entanto, que éramos amados. E o seu Itamar, nossa! Respeitadíssimo. Alguns tinham medo da seriedade dele. Era sério demais, formal demais, não foi um grande amigo, mas foi um grande e completo pai, apesar de tão casmurro. 
    E naquela rua o comunismo parecia sair do papel. Talvez por isso tenha sido tão crente nessa ideologia durante toda minha vida. Aquela rua foi mais que um lugar, foi uma fonte de aprendizagem. Lá aprendemos a ser gente, lá víamos pobres e ricos lutando contra a morte, buscando a vida acima de tudo. Lá convivíamos, éramos os mais humildes da rua, pais assalariados, casa emprestada, mas na rua Menino Deus éramos uma família. Dos Maia aos Guedes, dos Santos aos Vidal, todos escorregavam no pastinho, este era um espaço democrático, dos moradores do morro aos da ladeira, éramos todos iguais, talvez por causa do excesso de funerárias. De nossa casa vimos a morte de um eletricista ao cair do poste, amigo de meu pai, uma paciente também se jogou do muro, sobreviveu felizmente, nada quebrou, só teve alguns arranhões. A fé no Senhor dos Passos parecia proteger-nos lá de cima. Presenciamos o incêndio da funerária, o incêndio do hospital, a queda de um caminhão na ladeira que matou uma família inteira, enfim, presenciamos o tempo todo, a morte e a vida subir e descer a ladeira. E fomos crescendo, nos formando, nos casando. Algumas famílias: os Santos, os Nascimento, a dona Mocinha, os Guedes ainda resistem no Largo 13 de Maio, que não é mais aquela rua de casas pequenas e familiares, afinal, ninguém mais escorrega no pastinho, e poucos aparecem na rua  agora repleta de clínicas, bares e casa de show. 
    Restam saudades da época em que havia um Hospital de Caridade em Florianópolis; saudades de escorregar no pastinho e cair de bunda na ladeira, saudades de ficar no muro apreciando a procissão de Senhor dos Passos e de fazer os tapetes para sua passagem, saudades da família Guedes, do grande poeta Sr. Gil, saudades de uma época que não volta mais, saudades da última casa do lado esquerdo, onde hoje é um estacionamento, lá fomos felizes, uma família de nove filhos mais os cachorros, as galinhas de angola, as árvores, os amigos, a fé. Saudades de uma Floripa que não existe mais. 

Maio de 2010