“Gargalha, ri,
num riso de tormenta,/como um palhaço, que desengonçado,/nervoso, ri, num riso
absurdo, inflado/de uma ironia e de uma dor violenta”. Ao assistir ao Coringa (Joker, Todd Phillips, 2019), fui
perseguida por esse poema de Cruz e Sousa. Posso afirmar que é um longa
merecedor de um Oscar. É um filme sobre o quão devastadora pode ser a reação de
alguém que é pisoteado pela sociedade, alguém que não se enquadra, não se sujeita
a um denominador comum, tendo a gargalhada como válvula de escape para um
sentimento paradoxal. Coringa gargalha da própria desgraça e o riso o
atormenta.
A atuação de Joaquin Phoenix surpreende, seja
pelo olhar, seja pelos trejeitos desengonçados, mas é com o riso debochado e
dolorido que ele nos atinge. Poucos atores me surpreenderam tanto, talvez
Anthony Hopkins, em Instinto, tenha
me surpreendido, só que aqui com a mudez. A trilha também nos
invade, causa um impacto psicológico que atinge seu pico com Smile, não na voz de Nat king Cole, mas com
a rouquidão de Jimmy Durante. Somos também invadidos por um instrumental que amedronta e arrepia. O sorriso de dor, de desrespeito, de ódio é uma
maquiagem e, ao mesmo tempo, uma proteção, não nos deixando tomar apenas pela
dor imensa que perturba o coração, mas pela alma. Coringa é um mergulho na barbárie que se anuncia. Não é Gotham City,
pode ser o Rio de Janeiro, basta lembrar a imagem do protagonista reproduzindo
o sinal de arminha para a cabeça, quantas arminhas vimos apontadas para todos
os lados nos últimos tempos, não é mesmo? Fácil também fazer uma analogia entre
a sociedade em que mora o Coringa e
aquela de Seminário dos Ratos de
Lygia Fagundes Telles, ambas infestadas por "roedores", reforçando uma crítica
político-social metafórica, mas ainda real, infelizmente.
Assim, o batom vermelho, que ultrapassa os
contornos da boca, confunde-se com o sangue, com as múltiplas violências cotidianas.
Bom ressaltar, no entanto, que a dor em Coringa é o fato de ele
gargalhar, em vez de chorar. Ele não chora, tem lágrimas presas. O fato é que saí do cinema com um nó de indignação
na garganta. Sem vontade de gargalhar, indignada com as frustrações e
exposições nas redes sociais, na falsidade de programas de auditório que usam
os indivíduos para atingir um ibope, nas fake news que se reproduzem como
verdades absolutas. Indignada com a manipulação em uma sociedade em que os fins
justificam os meios. Os palhaços, ou os mascarados de palhaços sofrem, porque
vivem à margem, são os diferentes, os que querem chorar, mas a quem impõem um
riso: “sorria, mesmo que seu coração esteja doendo”, como se não tivessem nem mesmo direito à dor e ao choro. São os que almejam um “mito”,
herói ou anti-herói, porque se sentem injustiçados e desamparados, invadidos por
lama, óleo, ódio. São os que se veem ridicularizados por piadas, tendo vidas
expostas sem consentimento. É uma gargalhada atroz, sanguinolenta como a do
poeta Cruz e Sousa, emparedado pela dor e o preconceito.
Assistam ao Coringa. É um longa sobre o quão
fundamental se faz hoje a empatia, logo, tente enxergar os inúmeros Coringas
que circulam por aí e lembre-se de que um vilão não nasce vilão, torna-se. É um
filme sobre o perigo que é adotar a frase: “Bandido bom é bandido morto”. É
um filme sobre a barbárie que se anuncia. Como finalizou o poeta simbolista: “ri!
Coração, tristíssimo palhaço.