segunda-feira, 28 de outubro de 2019

Acrobata da dor




Gargalha, ri, num riso de tormenta,/como um palhaço, que desengonçado,/nervoso, ri, num riso absurdo, inflado/de uma ironia e de uma dor violenta”. Ao assistir ao Coringa (Joker, Todd Phillips, 2019), fui perseguida por esse poema de Cruz e Sousa. Posso afirmar que é um longa merecedor de um Oscar. É um filme sobre o quão devastadora pode ser a reação de alguém que é pisoteado pela sociedade, alguém que não se enquadra, não se sujeita a um denominador comum, tendo a gargalhada como válvula de escape para um sentimento paradoxal. Coringa gargalha da própria desgraça e o riso o atormenta.   
A atuação de Joaquin Phoenix surpreende, seja pelo olhar, seja pelos trejeitos desengonçados, mas é com o riso debochado e dolorido que ele nos atinge. Poucos atores me surpreenderam tanto, talvez Anthony Hopkins, em Instinto, tenha me surpreendido, só que aqui com a mudez. A trilha também nos invade, causa um impacto psicológico que atinge seu pico com Smile, não na voz de Nat king Cole, mas com a rouquidão de Jimmy Durante. Somos também invadidos por um instrumental que amedronta e arrepia. O sorriso de dor, de desrespeito, de ódio é uma maquiagem e, ao mesmo tempo, uma proteção, não nos deixando tomar apenas pela dor imensa que perturba o coração, mas pela alma. Coringa é um mergulho na barbárie que se anuncia. Não é Gotham City, pode ser o Rio de Janeiro, basta lembrar a imagem do protagonista reproduzindo o sinal de arminha para a cabeça, quantas arminhas vimos apontadas para todos os lados nos últimos tempos, não é mesmo? Fácil também fazer uma analogia entre a sociedade em que mora o Coringa e aquela de Seminário dos Ratos de Lygia Fagundes Telles, ambas infestadas por "roedores", reforçando uma crítica político-social metafórica, mas ainda real, infelizmente.
Assim, o batom vermelho, que ultrapassa os contornos da boca, confunde-se com o sangue, com as múltiplas violências cotidianas.  Bom ressaltar, no entanto, que a dor em Coringa é o fato de ele gargalhar, em vez de chorar. Ele não chora, tem lágrimas presas. O fato é que saí do cinema com um nó de indignação na garganta. Sem vontade de gargalhar, indignada com as frustrações e exposições nas redes sociais, na falsidade de programas de auditório que usam os indivíduos para atingir um ibope, nas fake news que se reproduzem como verdades absolutas. Indignada com a manipulação em uma sociedade em que os fins justificam os meios. Os palhaços, ou os mascarados de palhaços sofrem, porque vivem à margem, são os diferentes, os que querem chorar, mas a quem impõem um riso: “sorria, mesmo que seu coração esteja doendo”, como se não tivessem nem mesmo direito à dor e ao choro.  São os que almejam um “mito”, herói ou anti-herói, porque se sentem injustiçados e desamparados, invadidos por lama, óleo, ódio. São os que se veem ridicularizados por piadas, tendo vidas expostas sem consentimento. É uma gargalhada atroz, sanguinolenta como a do poeta Cruz e Sousa, emparedado pela dor e o preconceito.  
Assistam ao Coringa. É um longa sobre o quão fundamental se faz hoje a empatia, logo, tente enxergar os inúmeros Coringas que circulam por aí e lembre-se de que um vilão não nasce vilão, torna-se. É um filme sobre o perigo que é adotar a frase: “Bandido bom é bandido morto”. É um filme sobre a barbárie que se anuncia. Como finalizou o poeta simbolista: “ri! Coração, tristíssimo palhaço.

domingo, 1 de setembro de 2019

Sobre resistência



Bacurau, já conhecido como um filme sobre a resistência, é um longa-metragem sobre a miserabilidade humana que supera a fome e a sede. Aborda diferentes lados da miséria humana: uma, fruto do descaso e do descalabro político, e outra, retrato de uma sociedade bem educada, desenvolvida, mas desprovida de empatia. Há os miseráveis severinos e retirantes, pobres e mestiços, tão parecidos com a família do personagem Fabiano de Graciliano Ramos, e há os miseráveis brancos, ricos e privilegiados, tão próximos de nomes como Dylan Klebold e Eric Harris, líderes de um dos maiores massacres da história dos EUA.
Saí da sala de cinema com um sentimento estranho, algo entre um sufoco e um aperto no peito. Não tive vontade de chorar. Meu cérebro tentava recuperar a quantidade de referências que o filme proporcionou, por isso tive vontade de assistir ao filme mais uma vez. Tive vontade de compartilhar com amigos que assistem como eu, nos últimos anos, a um país se autodestruindo. Senti-me, naquela tela, representada. Ora por uma fala, ora por uma personagem, ora ainda por uma música, cuidadosamente pensada: Vim aqui só pra dizer/ Ninguém há de me calar/ Se alguém tem que morrer/ Que seja pra melhorar. Caetano Veloso, Sérgio Ricardo, Geraldo Vandré. Foi de tirar o fôlego. Saí de lá abrigada pela resistência.
Uma igreja. Um museu. Um bar. Uma escola. Casas ao redor. Bacurau parece uma cidadezinha como qualquer outra do interior nordestino. Invisível. Desabrigada. Surpreende, no entanto, o fato de ser habitada por um povo crítico e corajoso que fecha a porta a seu representante político, um prefeito escroto e mau caráter como tantos Brasil afora. A igreja encontra-se sempre aberta, mas nunca é frequentada. Na escola, as crianças divertem-se com um professor didático e moderno. O museu torna-se peça chave pra entender um texto inteligente e destacar a importância da história de um povo quase sempre contada a partir de apenas um ponto de vista, afinal, o sertão vai virar mar. Bacurau é história viva.  
Roteiro e direção de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, indicado ao Palma de Ouro e vencedor do Prêmio do Júri em Cannes, Bacurau (2019) reapresenta o antagonismo pobre/rico, branco/negro, Brasil/Sul do Brasil, reforçando a importância de se manter a unidade em país ainda tão fragmentado pelo preconceito. Logo, é um filme sobre um Brasil que clama por armas, que tem sede de justiça, que quer bandido morto, um país governado por um homem branco certo de sua superioridade e que impossibilita a construção de um país democrático, livre e civilizado. Instala-se, no Brasil de 2019, como filme, a barbárie. Bacurau é um pássaro da noite, quiçá o condor de Castro Alves.  Há uma distopia à medida que o país está cada vez mais próximo de viver em condições de extremas de opressão, desespero e privações. Reforça mais do que nunca a necessidade de entender a história para não se criminalizarem lutas sociais, tão fundamentais à construção da democracia, mas é mais ainda uma narrativa sobre a luta pela sobrevivência.
E não faltam efeitos especiais, tão do agrado de alguns telespectadores deste século, assim como temas atuais como tecnologia de ponta, a sociedade vigiada de Orwell e o já velho: Sorria, você está sendo filmado. O foco, entretanto, diria que está mais para Pe. Vieira em seu Sermão do Bom Ladrão: O ladrão que furta para comer, não vai, nem leva ao inferno; os que não só vão, mas levam, de que eu trato, são outros ladrões, de maior calibre e de mais alta esfera, os quais debaixo do mesmo nome e do mesmo predicamento... — Os outros ladrões roubam um homem: estes roubam cidades e reinos; os outros furtam debaixo do seu risco: estes sem temor, nem perigo; os outros, se furtam, são enforcados: estes furtam e enforcam. O fato que ao pobre não lhe é dado nem mesmo o direito de se defender, de pegar em armas. Pobre nasce para morrer, é isso?
Bacurau é um filme sobre o que há de humano ou não no indivíduo, contrastando diferentes pobrezas. É um filme sobre seres que parecem não sangrar: aqueles que o riso é produto da maldade, parecem ter olhos de vidro, não lacrimejam, sentem-se felizes com a desgraça do outro. Aqueles que têm tesão pela dor do outro. Bacurau é um Brasil em que negros, mulheres, artistas, pobres e professores apesar de estarem marcados para morrer, resistem.

São José, 01 de setembro de 2019.

terça-feira, 13 de agosto de 2019

Muito além de um jogo




Ora uma partida de futebol de 7 a 1, ora uma sessão de teatro lotada que se esvazia aos poucos, mas mantém a atenção de alguns espectadores. É assim, ou quase isso, uma sala de aula, bom ressaltar que, no jogo,  os professores levam a goleada. Confesso: sou uma incansável torcedora, pois me mantenho em sala de aula, afinal, ainda me encanto com os poucos olhos brilhando. Tento, assim, pelo riso, estreitar relações e, como não me preocupo com julgamentos, algumas vezes pareço uma adolescente, outras, uma palhaça, outras ainda uma louca. Tô nem aí.
Nem eu, nem eles, às vezes, compreendemos as piadas que surgem. Há falta de comunicação, pois se falam línguas diferentes. A equipe fala uma língua, os professores outra, os pais nenhuma das duas, já os alunos comunicam-se por mensagens subliminares e códigos, muiiiiiitos. A escola é uma torre de Babel. Proibir os jovens de acessar as redes sociais é algo incompreensível. Nossos quadrados também não fazem mais sentido e perfilar jovens por mais de quatro horas é, na verdade, retrógrado em se pensando em tantas teorias sobre educação. Se a escola que idealizo prepara seus educandos para a vida fora dela, aprender a lidar com as redes sociais deveria ser sim uma obrigação da escola, não haveria tanta manipulação via fake news, ninguém (ou quase ninguém) deixaria de tomar vacina, uma mulher não seria arrastada por quilômetros, professores, artistas e cientistas não seriam criminalizados. Nossos alunos precisam estar do nosso lado de forma consciente, na certeza de que a educação e a democracia andam juntas. Precisam saber da importância de se ter voz do lado esquerdo ou direito, na frente ou atrás da sala de aula. Educação se faz em equipe e falando uma mesma língua.  
Logo, não são raras as vezes que me sinto ultrapassada. É só conversar com meus alunos, de igual pra igual, que desabrocha algo que sequer imaginava. Alguns dizem que sempre foi assim, que pais e filhos, professores e alunos sempre falaram línguas diferentes. Não. O distanciamento mudou consideravelmente. Hoje no carro, por exemplo, enquanto ouvíamos Teresa Cristina, meu filho ouvia algo no seu fone que desconhecemos. Antes, mesmo que goela abaixo, ouvíamos o mesmo que nossos pais. Quase ninguém ficava recluso em seu quarto com um computador trocando ideias com meio mundo. Na casa de meus pais, compartilhávamos a tevê e a mesa, hoje o que nossos jovens compartilham está por aí, em uma nuvem, talvez, ou nas redes de amigos de amigos de amigos que não conhecem. Nossos alunos vêem mais por telas do que fora delas. Os quadrados de seus quartos são muito mais importantes e globais que os quadrados de suas salas de aula repletas de bullyings e proibições, lá eles podem ultrapassá-los, nas salas eles encontram-se limitados. Pais e professores ainda impõem o faça o que eu digo, não o que eu faço. E isso não rola mais. Falando em rolar mais, não me refiro a, segundo o dicionário, avançar girando sobre si mesmo, quero dizer que isso não faz mais o menor sentido, não que antes fizesse, mas não questionávamos. Hoje eles, felizmente, questionam e, em geral, não engolem o que não querem.
O uso da língua, assim como a forma que se estrutura e consolida, é um ato familiar, social e político e nós, professores devemos nos preocupar com seu uso. Voltando à linguagem, um dia desses um aluno ao sair de sala me disse: “Professora, sou chelsea”, e fez um C com a mão. Eu, curiosa que sou, questionei se a afirmação dele tinha algo a ver com a polêmica de Neymar, pois anteriormente falavam sobre o fato.  Eles se entreolharam, riram e me disseram para perguntar para meu filho. Óbvio que não esperaria chegar em casa. Ao voltar à sala, o aluno, sob pressão (rrsrsrsrs) me disse que fazer o tal C, de chelsea, quer dizer, nas redes sociais, estou disponível para transar sem camisinha.  E travamos ali e em outras salas um papo cabeça sobre língua, linguagem e sobre o quão louco é, ainda hoje, sexo sem proteção. Segundo uma maioria, a escolha do time chelsea é porque este joga sujo, quem joga limpo, é borussia, logo, sexo protegido. E me chamaram de xaaaaaata que significa estilosa. Para eles, linguagem de casqueiro. Ressurgiu ali o preconceito.
O fato é que nosso vocabulário distancia-se cada vez mais do de nossos alunos, não são poucas as vezes que não compreendem o que falamos e/ou escrevemos. Isso justifica o pouco interesse que têm pelo ensino de línguas em geral. Reforçando os muitos distanciamentos, há alguns anos, meus alunos não conheciam os mortos, hoje não conhecem nem os vivos, e nem eu. Eu não conhecia o tal do Gabriel Diniz, muito menos sua Jennifer. Já para uma grande parcela de jovens, Chico Buarque e Chico Xavier são a mesma pessoa. Nossos jovens vão a shows de trap, ficam bolados com a gente, têm relações líquidas, compartilham fotos. Nossos jovens pouco pensam em carteira assinada, em trabalhar 8h diárias, por isso não se importam com a reforma da previdência. Eles não vivem, como vivemos, para formar família, ter uma casa e se aposentar. Antes, um diploma de curso superior era a certeza de ascender na pirâmide, hoje ele pode significar uma ameaça.
Como professora e mãe de jovens, só o que penso é em tirá-los de bolhas. Leio textos. Declamo poesias. Conto piadas. Danço. Às vezes desço do salto. Não feliz com o 7 a 1, tenho a esperança em um outros jogos, em outras equipes, em outros resultados. Quanto ao teatro, o show tem sempre que continuar, não é mesmo?



sexta-feira, 21 de junho de 2019

Qualé não é qualquer.




A night ferve, digo, bomba. Olhares atrevidos. Outros desconfiados. A mulherada na cinta, no salto, no reboco. A homarada quase como veio ao mundo, só que com aquela roupinha curtida, manjada, largada.
Sem palco. Sem salão. Um quarteto de músicos divide o espaço com casais afoitos por uma boa música. Não toca Raul. Juliana d Passos com todo seu axé canta Dona Ivone Lara: "Melhor é viver cantando/as  coisas do coração".  Mas quase ninguém está preocupado com o coração. Naquela noite, a razão predomina. É dia de níver e predomina no ar a alegria por mais um ano de vida, apesar  dos pesares e do país do avesso. Neco cumprimenta, como sempre, o povo que chega. Seu Lidinho, de vermelho e branco, ensaia um samba miudinho.  A caipira é saboreada por algumas mulheres que extravasam  a jornada tripla. Mari chega elegantérrima. Não precisava exagerar, afinal, não está no Cafè de la Musique, mas  na casa de samba à Lapa mais acolhedora de Floripa, onde um qualé mané é sempre bem-vindo.
Só havia olhos pra  Mari, com tudo em cima, com as amigas, a olhos machistas estava querendo. Em tempos de feminismo, no entanto, mulher escolhe, môs quiridus. Não dança com qualquer um não. Não precisa de qualquer um não. Fedido, nem pensar. Pilantra, nem pensar. Mal educado muito menos. Fã do... então, ai. Manda pastar  Não quer resto, quer alguém inteiro. Não precisa ser bombado e nem precisa ser homem. Precisa ser gente que a trate com respeito. Se for gay é bom demais, pois é provável que dance livre, leve e solto. Tem homem ainda que se recusa a encarar o século XXI,  acredita que quem está ali sentada e sozinha esteja louca por um macho. Caia, na real, istepô,  hoje mulher dança sozinha, ri com as amigas, é independente, livre e desconstroi, a cada dia,  estereótipos. É subestimada e resiste. Aliás, resistência é a palavra da vez. 
Em pé, parados como guardas de trânsito, alguns homens  colocam-se em pontos estratégicos. De braços cruzados, convencidos do prêmio a receber, procuram pelas próximas vítimas. Um deles aproxima-se de Mari, na certeza de que, naquela noite, conduziria uma linda mulher. "Vamos dançar?" Ela o mira dos pés à cabeça, recusa o convite e depois compartilha com as amigas:   "De bermuda, tênis  branco e meia preta, eu hein, nem pensar". 
Ah! Essas minhas amigas...

domingo, 28 de abril de 2019

O céu não é para todos.




Não. Não odiamos o Brasil, tampouco a bandeira nacional. Não. Não queremos morar em Cuba, tampouco em algum país europeu. Amamos o Brasil, mas o que é o Brasil sem o povo? E quem é o povo brasileiro? Um símbolo nacional não pode valer mais que o povo. A quem interessam os símbolos? Como exigir que crianças e jovens analfabetos funcionais cantem o hino? De que vale uma bandeira hasteada em um pátio de uma escola com o teto desabando? De que vale idealizar o verde e o amarelo da bandeira se não houver respeito ao meio ambiente e aos recursos naturais? Se cidades são inundadas por barragens que levam, além de casas, seres vivos?
No Brasil de 2019, veste-se a camisa da CBF, mas ignora-se o povo sofrido que, há séculos, tenta juntar pedaços de um país esquartejado desde a chegada dos colonizadores. No Brasil de 2019, o ódio ao diferente vence conquistas de séculos desgraçados que pensávamos haver amenizado. No Brasil de 2019, negro, mulher, gay, trans, pobres são reduzidos a pano de chão, perdem direitos civis, criminaliza-se a arte e os professores de humanas tornam-se uma ameaça. Bora fazer o povo ler, escrever e contar, desde que não questione, não é mesmo? Neste solo brasileiro, há muita lama, esgoto a céu aberto, sangue escorrendo para os bueiros: casa própria financiada desabando, água invadindo tudo, pontes caindo, projéteis perfurando corpos pretos de pretos pobres, mulheres sendo mortas por homens ensandecidos,  índios sendo massacrados, ambientalistas assassinados, sem-terras banidos de terras improdutivas. É um país em que poucos têm muita terra, outros, nenhuma. País em que pobre paga muito para ter uma vendinha no bairro, enquanto milionário não paga para navegar nos sete mares.  O sangue do brasileiro não é verde e amarelo, é vermelho, muitas vezes, anêmico, mas vermelho. Vermelho não é ameaça comunista. Nunca houve ameaça comunista, deixa de ingenuidade! A única ameaça que existe é a imperialista. O vermelho é a vida que escorre por nossos dedos, porque este país não se basta, afinal, brasão, selo, hino e bandeira nada significam se não há identificação do povo com eles. Enquanto o povo veste a camisa verde e amarela, reservas naturais são vendidas e agrotóxicos entram indiscriminadamente em nossos pratos.
Não. Não odiamos o Brasil, nem seus símbolos nacionais. Nós o amamos tanto, que damos o sangue por ele. Enquanto a morte for uma saída para cidadãos marginalizados e sem expectativa de vida, enquanto houver uma criança morrendo de fome, baleada e analfabeta, enquanto jovens negros sem oportunidades forem exterminados nas comunidades brasileiras, de nada valerão os símbolos nacionais, pois elas e eles são ou não o futuro deste país? “Lá no morro/quando morre uma criança/o comentário é geral/ dizem logo, este não vai sofrer/se libertou, se livrou do mal” Enquanto o sofrimento for um fim (ou um meio), a bandeira permanecerá vermelha, mesmo que a miopia não o faça enxergá-la banhada de sangue. Não é à toa que a árvore que simboliza o Brasil e que está quase extinção, é vermelha, não é mesmo? E agora, neste Brasil de 2019, será que até nossa carteira de trabalho será verde e amarelo? Agora compreendo por que o “céu não é para todos”.

domingo, 21 de abril de 2019

Boa páscoa!





Impossível não me lembrar da páscoa na infância. Minha mãe enchia nossas cestas com frutas e com canudos e ovos de amendoim que ela mesma fazia. Meus irmãos mais velhos faziam as pegadas de coelho no assoalho de casa e escondiam nossas cestas para que as encontrássemos pela manhã.  Em um domingo antes da páscoa, minha mãe ia à missa e trazia sempre um ramo da igreja, dizia que era bom queimá-lo em dias de trovoada.
Do hebraico, páscoa é passagem e não é só um dos feriados mais esperados do ano,  é uma data que vai além da religiosidade,  é uma data histórica e  política. Tem a ver com a história de um povo escravizado e com a ressurreição de um homem que, se tivesse nascido muitos séculos depois, seria tachado de comunista. No Brasil, seria assassinado por algum político incomodado com suas afirmações favoráveis aos direitos humanos, teria uma placa em sua homenagem arrancada e quebrada em praça pública, e esse ato, em nome dos bons costumes, seria ovacionado nas redes sociais, multiplicando-se de diferentes formas em mensagens no whatsApp. Seria só mais um bandido morto.
Gosto da ideia de ressurgir, de renascer, de procurar sempre ser um pouco melhor do que sou. Sendo mais específica, bom pensar que nós, seres humanos, podemos nos transformar em pessoas menos julgadoras, ter mais empatia e nos colocar sempre do lado de quem está pregado na cruz, à direita ou à esquerda, tudo depende da referência. Hoje, cada vez mais descrente em alguma religião, sofro com os rumos que o país toma, afinal, nasci cristã e o sentido da páscoa perde-se, como tantos outros. Deixar de acreditar na páscoa é como desacreditar na capacidade de renovação do indivíduo, insisto em acreditar em algo além de nós mesmos, em uma força da natureza que o homem não domina e não tem consciência, talvez isso seja religiosidade, mas pouco importa. Hoje se fazem necessárias as ações, estamos fartos e fartas de palavras ao vento.
Sou taurina, dizem que, por isso, sou também teimosa.  Então vou insistir em desejar-lhes uma feliz páscoa. Precisamos de renovação. Precisamos de passagem, de passos para frente. Quando o século XXI chegou e o mundo não acabou, pensamos que teríamos um mundo menos desumano e desigual,  quase vinte anos depois nos encontramos em um momento de retrocesso, não só político, mas social e humano, questionam-se fatos históricos, criminalizam-se professores e artistas, retornam movimentos de extrema direita que, em vários períodos da história, apedrejaram, queimaram, enforcaram, decapitaram, crucificaram os diferentes. Minha mãe, que amava metáforas, provérbios e ditos populares, diria que estão pegando muita gente pra cristo e a possibilidade do mundo acabar será um ato humano, deus não protagonizará essa história. Como ouvi um dia desses, deus, essa palavra tão bela, são "eus", assim prefiro sempre acreditar que deus não pune, perdoa; não julga, respeita; não odeia, ama. Deus não subordina ninguém, tampouco mulheres. Como mulher e feminista que sou, meu deus é o dos desgraçados de Castro Alves.
Enfim, o sentido da páscoa precisa ser cotidiano. Como uma pele que encrespa, resseca e se renova após queimada pelo excesso de sol, precisamos retirar esse ranço impregnado e velado durante os últimos anos. Precisamos voltar a acreditar no ser humano e em sua capacidade de respeitar a diferença, de nunca mais reforçar estereótipos. Difícil, quando se vê gente próxima defendendo a barbárie que já se instalou no país, mas é necessário não esquecer os Jesus, as Marielles, os Evaldos e tantos outros crucificados. Por ora, gente querida, hoje cabe uma apelação, que acordemos amanhã com menos ódio no coração e com menos ambição e vaidade, afinal, em uma sociedade civilizada, cacau não pode valer mais que um ser vivo. Boa páscoa!

 São José, 21 de abril de 2019.

domingo, 14 de abril de 2019

Quatro negros



Quatro pobres e negros
O que são, em meio a milhares, quatro negros?
Quatro a mais
Quatro a menos
Negros são negros
Filhos da noite
Descendentes de troncos e açoites
São negros
São apenas quatro negros
Com cara de pobre
Com cara de mala
Com cara de refúgio
São apenas quatro negros
De alma suja
De sangue encardido
De cabelo ruim
De beiço largo
De corpo avantajado
São apenas quatro negros
Com cara de cotista
Órfãos de justiça 
O que são, em meio a milhares, quatro negros?
Um a mais
Um a menos
Não faz a diferença
São apenas quatro negros
Sem público
Sem privado
Filhos do nada
Sem deuses dos desgraçados
Sem voz
Sem vez
São apenas quatro negros
De história velada
De direitos negados
De vidas sacrificadas
São apenas quatro negros
Parentes de Zumbi
Restos da escravidão
São apenas quatro
A se multiplicar em PG
São a utópica liberdade
Vezes quatro
Vezes cem
Vezes mil
São apenas quatro jovens
Pobres e negros
De incontáveis dores
De vidas metralhadas
De famílias destroçadas
São apenas quatro negros
Vezes quatro vezes quatro vezes quatro
Pares do preconceito
Vítimas do sistema
Filhos
Netos
Bisnetos da opressão

(De Choros e Velas, p. 64-65)

sexta-feira, 5 de abril de 2019

Loucura




voz inconformada de Pagu
ousadia de Leila Diniz
Carolina, possivelmente de Jesus
talvez personagem de Machado
indefinível como Capitu
idealizada como Ceci
ficcional de tão real

quer  o pé no chão
olhar além das lentes
rabiscar palavras desmedidas
sentir o mar
adormecer na areia da praia
desenhar um caminho de conchas
tropeçar nas dunas
se enterrar como criança
mostrar o dedo do meio
ficar apenas com a cabeça de fora
dirão: Tá louca
dirá:  felizmente

muito prazer
a louca