domingo, 1 de setembro de 2019

Sobre resistência



Bacurau, já conhecido como um filme sobre a resistência, é um longa-metragem sobre a miserabilidade humana que supera a fome e a sede. Aborda diferentes lados da miséria humana: uma, fruto do descaso e do descalabro político, e outra, retrato de uma sociedade bem educada, desenvolvida, mas desprovida de empatia. Há os miseráveis severinos e retirantes, pobres e mestiços, tão parecidos com a família do personagem Fabiano de Graciliano Ramos, e há os miseráveis brancos, ricos e privilegiados, tão próximos de nomes como Dylan Klebold e Eric Harris, líderes de um dos maiores massacres da história dos EUA.
Saí da sala de cinema com um sentimento estranho, algo entre um sufoco e um aperto no peito. Não tive vontade de chorar. Meu cérebro tentava recuperar a quantidade de referências que o filme proporcionou, por isso tive vontade de assistir ao filme mais uma vez. Tive vontade de compartilhar com amigos que assistem como eu, nos últimos anos, a um país se autodestruindo. Senti-me, naquela tela, representada. Ora por uma fala, ora por uma personagem, ora ainda por uma música, cuidadosamente pensada: Vim aqui só pra dizer/ Ninguém há de me calar/ Se alguém tem que morrer/ Que seja pra melhorar. Caetano Veloso, Sérgio Ricardo, Geraldo Vandré. Foi de tirar o fôlego. Saí de lá abrigada pela resistência.
Uma igreja. Um museu. Um bar. Uma escola. Casas ao redor. Bacurau parece uma cidadezinha como qualquer outra do interior nordestino. Invisível. Desabrigada. Surpreende, no entanto, o fato de ser habitada por um povo crítico e corajoso que fecha a porta a seu representante político, um prefeito escroto e mau caráter como tantos Brasil afora. A igreja encontra-se sempre aberta, mas nunca é frequentada. Na escola, as crianças divertem-se com um professor didático e moderno. O museu torna-se peça chave pra entender um texto inteligente e destacar a importância da história de um povo quase sempre contada a partir de apenas um ponto de vista, afinal, o sertão vai virar mar. Bacurau é história viva.  
Roteiro e direção de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, indicado ao Palma de Ouro e vencedor do Prêmio do Júri em Cannes, Bacurau (2019) reapresenta o antagonismo pobre/rico, branco/negro, Brasil/Sul do Brasil, reforçando a importância de se manter a unidade em país ainda tão fragmentado pelo preconceito. Logo, é um filme sobre um Brasil que clama por armas, que tem sede de justiça, que quer bandido morto, um país governado por um homem branco certo de sua superioridade e que impossibilita a construção de um país democrático, livre e civilizado. Instala-se, no Brasil de 2019, como filme, a barbárie. Bacurau é um pássaro da noite, quiçá o condor de Castro Alves.  Há uma distopia à medida que o país está cada vez mais próximo de viver em condições de extremas de opressão, desespero e privações. Reforça mais do que nunca a necessidade de entender a história para não se criminalizarem lutas sociais, tão fundamentais à construção da democracia, mas é mais ainda uma narrativa sobre a luta pela sobrevivência.
E não faltam efeitos especiais, tão do agrado de alguns telespectadores deste século, assim como temas atuais como tecnologia de ponta, a sociedade vigiada de Orwell e o já velho: Sorria, você está sendo filmado. O foco, entretanto, diria que está mais para Pe. Vieira em seu Sermão do Bom Ladrão: O ladrão que furta para comer, não vai, nem leva ao inferno; os que não só vão, mas levam, de que eu trato, são outros ladrões, de maior calibre e de mais alta esfera, os quais debaixo do mesmo nome e do mesmo predicamento... — Os outros ladrões roubam um homem: estes roubam cidades e reinos; os outros furtam debaixo do seu risco: estes sem temor, nem perigo; os outros, se furtam, são enforcados: estes furtam e enforcam. O fato que ao pobre não lhe é dado nem mesmo o direito de se defender, de pegar em armas. Pobre nasce para morrer, é isso?
Bacurau é um filme sobre o que há de humano ou não no indivíduo, contrastando diferentes pobrezas. É um filme sobre seres que parecem não sangrar: aqueles que o riso é produto da maldade, parecem ter olhos de vidro, não lacrimejam, sentem-se felizes com a desgraça do outro. Aqueles que têm tesão pela dor do outro. Bacurau é um Brasil em que negros, mulheres, artistas, pobres e professores apesar de estarem marcados para morrer, resistem.

São José, 01 de setembro de 2019.