domingo, 8 de março de 2020

Quero um país que não está no retrato.

Quero um país que não está no retrato.

Não sou uma pessoa que vive do passado. Estou aqui e agora, e o que passo me serve de referência. Sou da paz, mas não fujo da guerra - se necessária. Há alguns anos em uma renomada escola de Florianópolis, enquanto os professores tinham uma hora aula de 50 min, a das professoras era de  60, sem direito a uma pausa para o recreio, logo, trabalhávamos mais e recebíamos menos. Quando soube, questionei o diretor da escola que me disse: "Pô, aumentamos o número de aulas de vocês e ainda reclamam?" Reclamei. Resmunguei. Ameacei. Disse-lhe que iria à Justiça do Trabalho e perguntei como tinha coragem de fazer aquilo com três mulheres. Ele arregalou os olhos e se calou. Vencemos. 
O amor cega, e a paixão altera nosso comportamento, e isso acontece também no trabalho. Quando amamos o que fazemos nos deixamos levar pela emoção, mas é necessário manter a razão e jamais esquecer que onde há uma relação de poder, há uma possível forma de exploração, esta obviamente, dos  "mais fracos". Já me disseram para virar a página. Já me pediram para mudar de foco, de tema. Já fui contestada,  sem problemas. E já fui desrespeitada. Porque para algumas pessoas à mulher cabe calar e aceitar,  e escancarar os muitos abusos que ainda sofremo é mimimi. Não posso, nem vou me calar.  Quiçá um dia não precisemos mais exigir o que nos é de direito. Enquanto isso não acontece, serei chata, redundante, insuportavelmente feminista.  
Pouco tenho assistido à tevê, essa semana, no entanto, vi uma cena de arrepiar o cabelo de qualquer cidadão civilizado: uma mulher sendo arrastada e espancada pelo marido. Não divulgaram o nome do agressor, mas não se cansam de divulgar nomes de mulheres vítimas de seus ex. Nomes femininos ilustram páginas de jornais e nas redes sociais são compartilhados. Todos os dias, brasileiras (incluindo as trans) são mortas. Não há medida protetiva capaz de fazer homens parar de matar. O Brasil é um matadouro de mulheres. Não há leis que inibam homens possessivos de enxergarem que elas têm direito de escolha, e que ninguém é de ninguém, aqui vale o clichê. 
Nas últimas férias, ficamos quase um mês em Riga, na Letônia, onde tentei explicar para uma letã a importância do feminismo no Brasil. Ela não compreendia. Pensei que fosse pelo meu preguiçoso inglês. Ao  caminhar pelas ruas da capital e observar o modo como vive aquele povo, pude perceber de imediato o quão é irrelevante o feminismo por lá.  Andando por Riga, vimos mulheres no comando de trens de superfície, lá também elas são maioria no Mercado Público, lá também vemos muitos casais jovens em restaurantes com dois ou três filhos, os pais brincando com as crianças enquanto as mães olham celulares. Lá há 100% de igualdade entre homens e mulheres. É lá, não é aqui. 
Hoje é um dia de luta e todos nós deveríamos lutar por direitos à igualdade, porque esta não é só boa para as mulheres. Todos nós, independente de sexo e gênero temos direitos de escolha. Temos que desenhar, se preciso for, e calar nunca será uma solução. Logo, à mulher, no Brasil  assim como na Letônia, cabe um facão fora de sua cozinha.
Somos fruto da violência, do processo de colonização à democratização do país, não faltam agressões físicas, psicológicas e morais. O Brasil é um país de estupradores, não só de mulheres, mas de direitos de cidadãos, sejam negros,brancos ou índios e brancos, homens ou mulheres, cis ou trans. Dados não faltam: em 2019 houve um aumento de 7,3% nos casos de feminicídios no Brasil – crimes de ódio motivados pela condição de gênero e em Santa Catarina, 59 mulheres morreram. Temos muito ainda a conquistar, o corpo feminino precisa deixar de ser vinculado a objeto de desejo erótico, também precisa deixar de ser um produto de beleza, ser mulher  vai além do feminino, da sexualidade e do padrão. A luta é coletiva e não se restringe apenas à vida de mulheres, mas à de homens também, afinal, sempre que morre uma mulher, existe menos possibilidade de um homem nascer. Não há vida sem a mulher, sem o feminino. Não existe um homem sem o "x" do feminino. 
Reforço a postagem na internet de uma das últimas vítimas de feminicídio nos últimos dias: "Se o coronavírus matasse 1 pessoa a cada 2 horas, totalizando 4.476 mortes em um ano, estaríamos completamente em pânico! No Brasil, 1 mulher é morta a cada duas 2 horas, e  ninguém quer enxergar isso como uma epidemia". Hoje recebi várias mensagens meio festivas pelo dia 8 de março, mas não é, ainda, um dia de festa. Talvez para algumas de nós seja um dia feliz, para a maioria, entretanto, é só mais um dia de dor, mas o retrato há de ser outro.  

São José da Terra Firme, 8 de março de 2020.

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