sábado, 28 de março de 2020

Ressignificando o direito de ir e vir.



O dia parece ter mais de 24h e a semana, mais de sete dias. Anteontem, ontem e hoje eu acordei e limpei a casa. Organizei roupas e calçados, louças, livros, bijous. Parecem dias normais, o sol me acena lá fora,  mas cai a ficha: tenho que ficar em casa. Sobra tempo também para (re)ler, meditar e me preocupar  com o amanhã, afinal, não faz sentido ter uma casa grande e vazia. Gosto de ocupar todos os cômodos, de preenchê-la com música, literatura e amigos e familiares. Meus livros não param na estante, muito menos eu, em casa.  Em tempos de coronavírus, relembro-me de Drummond: Cantaremos o medo, que esteriliza os abraços.
Nunca imaginei que passaria por algo parecido: ficar em quarentena. Quarentena para mim era resguardo, aquele período pós-parto que eu, só para variar, não obedeci. No Mestrado, grávida de Marianne, voltei à UFSC em menos de um mês, no Doutorado, grávida de Vinícius, idem.  Sou desobediente - confesso. Ordem para não sair de casa sempre foi uma tentação, bem diferente de ficar por opção.  Proibido proibir para mim é castigo, e como sou sociável (até em excesso), sou daquelas que sofre por não poder cumprimentar meus amigos com beijos e abraços apertados; sofre por não poder sair, por não poder sentar em um café para escrever, ou em uma mesa para ouvir um bom samba, rir e dançar muito (eu danço até sentada). Lima Barreto, em seu Diário,  inveja a liberdade dos navios:  Eu estava preso por entre as grades e sempre sonhei ir por aí afora, ver terras, coisas e gentes. É essa sensação. Come io sono un può italiana, sinto a dor de quem por lá está, impedido de se despedir e de velar entes queridos, por isso fico em casa. Sou invadida pelo medo. Medo pelo outro, por nossa família, por quem não conheço. Medo do que me aguarda, da quarentena que pode ultrapassar meses. Medo da distância que se agigantou entre mim e minha filha. Medo por aqueles que, sem casa para limpar e oganizar, ainda são privados de sorrisos e amores.  E por medo, compaixão, empatia e responsabilidade desobedeço meus instintos: fico em casa.
Sabe aquele vestido novo com etiqueta? Pode nunca sair do armário. E aquele batom novo?Será esquecido na gaveta. Não há nada pior, entretanto, que perder alguém amado, por isso eu fico em casa. Ressignifico o ficar em casa, agora não mais como uma proibição, como nos tempos de adolescência, mas como luta, e eu nunca fujo de uma boa luta. E sair de casa passa até a me atormentar, pois penso na fala do "presidente" que diz ser apenas uma gripezinha e que morrerão pessoas, qual o problema? São mais de 15000 mortes no mundo e quase 100 no Brasil, e o coronavírius aproxima-se: uma conhecida está internada, entubada, e nem passou dos 60 anos, não faz parte do grupo de risco. Medo e insegurança me deixam sem saber qual a pior doença a ser combatida no Brasil, se o Covid-19 ou a ignorância e o egoísmo de uma grande parcela de brasileiros encorajada por seu representante a sair de casa.  Fato é que com o atual "presidente" todo cidadão brasileiro passa a ser do grupo de risco, tenha a idade que tiver.
Aqui em casa as portas sempre estarão abertas aos queridos que agora passarão a tirar os calçados. Sem abraços. Sem beijos. Haverá um café, um almoço, uma roda de choro, declamação de poesia, troca de livros e, possivelmente, um vidro de álcool gel. Isso quando todos puderem sair de casa. A melhor prevenção será, no entanto, o respeito à vida, sempre. A economia se recupera, vidas não.  A vida alerta para o quão a morte é seu outro lado da moeda, o quão frágil é o ser humano e que um vírus pode vencer batalhas apesar de todo avanço tecnológico e cientifico. Um médico italiano disse que  não parece ter feito o máximo. E é essa sensação de impotência que amedronta. Voltando ao escritor pré-modernista: Não há dinheiro que evite a morte, quando ela tenha de vir. Essa é uma certeza, é certo também, no entanto, que a ciência está a nossa favor, assim, talvez não possamos evitar a morte, mas podemos adiá-la, ela virá, só não pode ser fruto da incompetência "humana". Quanto ao medo, cito por aqui um verso de um de meus poemas do livro o amor não cabe no peito: Medo é pássaro sem asas.

São José da Terra Firme, 28 de março de 2020.

2 comentários:

  1. Maravilha de texto me toca no fundo de minha alma te o por isso querida amiga poeta escritora parabéns

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  2. Excelente texto! Parabéns Rosane👏🏻👏🏻👏🏻

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