Acordou, caiu embaixo do
chuveiro e lavou-se como quem lava um cão pulguento. Evitou o espelho. Escolheu
a dedo uma roupa que, há tempos, não vestia. Nós pés, um tênis confortável, pois
haveria de ser um longo percurso. Passou um pente pelos cabelos molhados e,
pela primeira vez, em muitos anos, não os secou. Tomou uma xícara de café
amargo e saiu, deixando, sobre a mesa, a aliança. Na bolsa, nem batons, nem perfumes,
carregava apenas uma certeza, uma máscara reserva e uma caneta que herdou do
pai.
Era um lindo dia de março
e já era possível sentir o frescor do outono que se aproximava. No trabalho,
dirigiu-se à sua sala e a primeira coisa que fez foi jogar, no lixo, a rosa que
recebera da empresa. Há dez anos trabalhava naquele local, nunca se atrasou,
nem faltou, era uma funcionária exemplar e não faltavam elogios a seu trabalho
que, muitas vezes, ultrapassava as oito horas diárias, mas nunca recebeu um
puto extra. Às vezes, nem hora pro café tinha. Felizmente, nem filhos teve pra
não ser, como sua amiga Nina, demitida meses depois, e o que seria deles agora?
E o cargo de chefia quando Marcelo se aposentou, foi pra quem? Quantas vezes
ouviu o patrão dizer que chefe de saia não sabia se impor? Deixou de usar saias e tênis. Sentou-se em sua
mesa, enojada daquele computador e só levantou quando terminou de escrever à
mão aquela carta que seria o início de sua libertação. Deixou o texto sobre a
mesa e saiu sem se despedir. O Joas até tentou alcançá-la na entrada do
elevador, mas assim que a porta se fechou, ela lhe deu um sorriso e um
tchauzinho sarcásticos.
Atravessou a cidade. No
caminho, dois homens lhe desejaram um feliz dia. Ela encarou-os e apontou-lhes o
dedo do meio. E da mão esquerda. Atrasada, apressou os passos. Eles pouco
entenderam, possivelmente acreditaram ser ela uma louca, como tantas loucas por
aí. Entrou no prédio. Lá, após longas conversas com uma das advogadas, assinou,
com aquela mesma caneta, alguns papéis. Foram tristes lembranças de longos
cinco anos com dois trastes: o patrão e o marido, mas naquele dia não haveria
mais lágrimas, só passos e assinaturas. Ao sair, a barriga roncou, agora sim
era hora de um bom café.
Sentou-se em uma mesa num
dos melhores cafés da cidade. Naquele dia, nada de suco detox ou ovo
cozido. Pediu um pão de queijo e um
pedaço de sua torta favorita. Cruzou as pernas, colocando toda sua feminilidade
à prova. Deixou a saia subir e despreocupou-se com as calcinhas. Aquele seria o
seu dia. O garçom cumprimentou-a e entregou-lhe o menu e uma rosa que se
recusou a receber. Encarou-o e não precisou dizer nada. Ele pareceu entender
quando ela tirou da bolsa uma caneta e anotou, em um guardanapo, um pequeno
texto que lera no caminho: “Um dia uma mulher sábia disse: “Foda-se” e viveu
feliz para sempre”. Mais disposta, saiu do café ainda mais decidida.
Seus passos eram tão
certeiros que nem sentia cansaço, apesar da péssima noite que teve. O marido,
possivelmente, ainda dormia o sono dos justos. Bom que dormisse bastante, pois
seu despertar seria inesquecível. Entrou corajosa na delegacia. Há anos a
paixão a cegara e a emudecera. Talvez se tivesse recebido mais livros, e menos
rosas, mais livros, e menos bonecas, mais livros, e menos batons, despertasse
antes da merda que fez. Bem que a tia avisou, e a vizinha também. Elas tinham
experiência e já haviam lhe dito pra não largar a faculdade e se enroscar com o
primeiro que aparecesse, mas fazer o quê? Preferiu acreditar em contos de fada.
Antes de sair da delegacia, assinou mais
alguns papeis com aquela mesma caneta.
Naquele dia, ficou mais
leve, deixando, no caminho, o emprego e o marido. Trocou uma rosa por uma
caneta. Sentou-se na beira da praia, tirou o tênis e deixou que a água molhasse
seus pés. Estava imune. Nem se sentiu abafada
pelo uso contínuo da máscara. Olhou pro céu e lembrou-se de que que não
voltaria mais nem àquela casa, nem àquele trabalho. 8 de março de 2021
tornou-se um grande dia.