segunda-feira, 28 de outubro de 2019

Acrobata da dor




Gargalha, ri, num riso de tormenta,/como um palhaço, que desengonçado,/nervoso, ri, num riso absurdo, inflado/de uma ironia e de uma dor violenta”. Ao assistir ao Coringa (Joker, Todd Phillips, 2019), fui perseguida por esse poema de Cruz e Sousa. Posso afirmar que é um longa merecedor de um Oscar. É um filme sobre o quão devastadora pode ser a reação de alguém que é pisoteado pela sociedade, alguém que não se enquadra, não se sujeita a um denominador comum, tendo a gargalhada como válvula de escape para um sentimento paradoxal. Coringa gargalha da própria desgraça e o riso o atormenta.   
A atuação de Joaquin Phoenix surpreende, seja pelo olhar, seja pelos trejeitos desengonçados, mas é com o riso debochado e dolorido que ele nos atinge. Poucos atores me surpreenderam tanto, talvez Anthony Hopkins, em Instinto, tenha me surpreendido, só que aqui com a mudez. A trilha também nos invade, causa um impacto psicológico que atinge seu pico com Smile, não na voz de Nat king Cole, mas com a rouquidão de Jimmy Durante. Somos também invadidos por um instrumental que amedronta e arrepia. O sorriso de dor, de desrespeito, de ódio é uma maquiagem e, ao mesmo tempo, uma proteção, não nos deixando tomar apenas pela dor imensa que perturba o coração, mas pela alma. Coringa é um mergulho na barbárie que se anuncia. Não é Gotham City, pode ser o Rio de Janeiro, basta lembrar a imagem do protagonista reproduzindo o sinal de arminha para a cabeça, quantas arminhas vimos apontadas para todos os lados nos últimos tempos, não é mesmo? Fácil também fazer uma analogia entre a sociedade em que mora o Coringa e aquela de Seminário dos Ratos de Lygia Fagundes Telles, ambas infestadas por "roedores", reforçando uma crítica político-social metafórica, mas ainda real, infelizmente.
Assim, o batom vermelho, que ultrapassa os contornos da boca, confunde-se com o sangue, com as múltiplas violências cotidianas.  Bom ressaltar, no entanto, que a dor em Coringa é o fato de ele gargalhar, em vez de chorar. Ele não chora, tem lágrimas presas. O fato é que saí do cinema com um nó de indignação na garganta. Sem vontade de gargalhar, indignada com as frustrações e exposições nas redes sociais, na falsidade de programas de auditório que usam os indivíduos para atingir um ibope, nas fake news que se reproduzem como verdades absolutas. Indignada com a manipulação em uma sociedade em que os fins justificam os meios. Os palhaços, ou os mascarados de palhaços sofrem, porque vivem à margem, são os diferentes, os que querem chorar, mas a quem impõem um riso: “sorria, mesmo que seu coração esteja doendo”, como se não tivessem nem mesmo direito à dor e ao choro.  São os que almejam um “mito”, herói ou anti-herói, porque se sentem injustiçados e desamparados, invadidos por lama, óleo, ódio. São os que se veem ridicularizados por piadas, tendo vidas expostas sem consentimento. É uma gargalhada atroz, sanguinolenta como a do poeta Cruz e Sousa, emparedado pela dor e o preconceito.  
Assistam ao Coringa. É um longa sobre o quão fundamental se faz hoje a empatia, logo, tente enxergar os inúmeros Coringas que circulam por aí e lembre-se de que um vilão não nasce vilão, torna-se. É um filme sobre o perigo que é adotar a frase: “Bandido bom é bandido morto”. É um filme sobre a barbárie que se anuncia. Como finalizou o poeta simbolista: “ri! Coração, tristíssimo palhaço.