terça-feira, 10 de janeiro de 2023

Hora de retrospectiva

 

Retornamos a Riga. Antes de dormir vi pela tevê do hostel um pouco do que já havia visto pelas redes sociais. Penso no meu país, na minha família, nos amigos, em meus alunos. Nenhuma novidade, já sabíamos que isso ocorreria. Um conhecido em Riga indignado disse que dará um gelo na família, apoiadora dos atos de 8 de janeiro de 2023 no Brasil. No facebook internautas voltam a se atacar, nem se distanciou o natal e as famílias também já travam novas brigas. 

Relembro 2014. Pela tevê assisti a cidadãos de bem de verde e amarelo mandarem a Presidenta tomar no c... Ninguém foi preso. Anos antes, um certo deputado disse a uma deputada que ela não merecia ser estuprada. E quem não se lembra dos adesivos em carros simulando o estupro da Presidenta? Também ninguém foi responsabilizado. Cidadãos de bem passaram a idealizar novamente a fala do mesmo deputado que, ao brincar com o “imbrincável”, dessa vez resolveu homenagear o Ustra, um dos maiores torturadores da história do país. E as notícias falsas passaram a se reproduzir como baratas: mamadeira de piroca, kit gay , ideologia de gênero. Quem não se lembra da placa em homenagem a Marielle Franco destruída por dois políticos que buscavam restaurar a ordem? E assim internautas doutoraram-se em todas as áreas do conhecimento, na linguística, por exemplo, questionaram inclusive o gênero das palavras: “presidenta”, como assim?  Professores foram acusados de doutrinadores e, do nada,  passamos a viver uma ameaça comunista, e a ser amedrontados pela ideia do país virar uma Venezuela. E até Paulo Freire foi questionado por quem sequer leu uma linha da “Educação do oprimido”. E foi assim que defensores da família, da pátria e de Deus fantasiaram-se com a bandeira do país.

Consolidou-se de vez, nos últimos anos, um país divido. E nenhuma classe escapou à loucura que se fortaleceu com a eleição daquele deputado que há anos já deveria ter sido preso por instigar a violência, fazer arminha e debochar da democracia. Apesar das muitas resistências, aceitamos o resultado das urnas convictos de que o estrago seria enorme. E foi, seguido de uma pandemia, que chegou pra mostrar nossa fragilidade e nos desafiar ainda mais.  E enquanto o mundo reforçava com urgência pesquisas pra desenvolver vacinas contra a COVID,  o presidente do país reforçava o negacionismo, questionava a Organização das Nações Unidas. E desgovernou fazendo da pandemia uma ameaça comunista, afinal, era só uma gripezinha, e quem tomasse a vacina viraria jacaré. E até hoje tem quem acredite estar com algum chip instalado em seu corpo. Chegou a vez das universidades serem alvejadas, e os cidadãos de bem passaram a questionar cientistas e médicos do mundo inteiro, recusaram-se, como o mito deles, a usar máscaras e a tomar a vacina. E os grupos de whats app tornaram-se um inferno, bombardeando os usuários com mensagens aterrorizadoras. Soube-se de um certo escritório de produção de notícias falsas instalado no próprio governo, mas novamente ninguém foi preso, ou responsabilizado. E o país entrou em um período de instabilidade, tornando-se um péssimo exemplo de democracia. Resultado: quase 700.000 brasileiros mortos por COVID, somados às muitas vítimas de balas perdidas, racismo e feminicídio.

E tudo em nome da pátria, da família, de Deus. E tudo contra a corrupção  que, como se sabe, não deixou de existir durante o governo do falso messias, salvador apenas de sua família, não foi à toa que aprovou o sigilo de 100 anos. Felizmente o mundo gira, e como ninguém soltou a mão de ninguém, não deixamos barato. Se recebíamos uma notícia falsa, devolvíamos duas provando a farsa. Alguns aliados do governo, apoiadores do golpe de 2015, também perceberam o barco furado em que estavam se metendo, e um movimento forte e resistente passou a lutar pela verdade. Uniram-se forças! Levantamos do caos pra reencontrar o país que nos foi tirado lentamente. E reelegemos o único severino que poderá, unindo forças de muitos lados, reerguer esta nação em frangalhos. Mas os cidadãos mostraram-se ainda mais intolerantes, discordando do resultado das eleições e, mesmo sem provas, acusam o atual Presidente de ladrão, sendo que seu único problema foi desconstruir a lógica do capitalismo selvagem: humanizou o país, proporcionando direitos iguais a homens e mulheres pobres e negros, fortaleceu o SUS e as universidades, investiu em moradia, aliou-se a grandes homens que fizeram deste país uma nação a caminho do desenvolvimento, sendo ovacionado mundo afora. Mas a ameaça comunista... aff! Pela primeira vez na história nasceu o pobre de direita, que se aliou a quem o escraviza.

E, apesar de voltarmos a esperançar, o ar esta semana voltou a pesar. Feridas estão expostas. Há uma ameaça constante de um golpe, isso que o ano acabou de começar. Triste ver de longe meu país ainda tão dividido. Parecemos voltar à estaca zero. Fato é que quanto mais viajamos, mais reconhecemos o potencial do Brasil, e de nosso povo também, fatos, no entanto, mostram-nos o quanto somos pequenos e frágeis, pois muitas vezes não conseguimos resolver a fúria da natureza, basta ver as enchentes que ocorreram há pouco no país, basta se lembrar da pandemia.  Aqui no leste europeu, a neve intensa faz estragos, no Brasil, o calor excessivo também se mostra às vezes destruidor. Por ora, só o que penso é no país armado que fica pra trás, mas que precisa se amar como nação, unindo forças, deixando a moralidade de lado, sempre se lembrando dos direitos conquistados em 1988.

Daqui a uma semana voltaremos ao Brasil na certeza de que construiremos uma nação mais humana, certos de que o patriotismo cego só serve pra desfile cívico, ou ainda, pra fascistas imporem seus muitos preconceitos e manterem a hipocrisia, vestidos com uma farda impecável e com uma arma em punho. O que conta mesmo na construção de um país de primeiro mundo são as três refeições na casa de cada brasileiro, o acesso à educação de qualidade, à saúde, à moradia (e blábláblá), assim, como o respeito às instituições democráticas, às mulheres e negros que, a duras penas, construíram e formaram lindamente  este país miscigenado, colorido, livre.

Precisamos de um país que não puna apenas pobres, negros, trabalhadores. Precisamos de um país que dê exemplos e que coloque na cadeia quem realmente lá deveria estar. Precisamos, no país, de instituições que nos representem. Não precisamos de salvadores da pátria, nós é que precisamos também fazer nossa parte. Precisamos começar, já passou da hora.

Riga, 9 de janeiro de 2023.


 

 


5 comentários:

  1. Gostei muito desta retrospectiva! Obrigada. Parabéns!

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  2. Ana Cláudia Laurindo12 de janeiro de 2023 às 07:42

    Amei muito esse texto!

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  3. Maravilhoso. Posso dizer que graças ao bom Chico que "amanhã será novo dia".

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  4. Maravilhoso. E como diria o bom Chico "amanhã será outro dia"

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  5. Palavras da Rosane: encantadoras, como sempre!

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