sexta-feira, 4 de junho de 2021

Melhor deixar quieto.


Terça-feira fria de outono. Provas sobre a mesa aguardam as devidas correções. Finaliza-se o trimestre e, mais uma vez, uma rede de reclamações me fazem questionar o processo educacional. De uma lado, professores se surpreendem com a falta de conteúdo dos alunos, do outro, alunos reclamam do processo avaliativo, estressante e contraditório. E a culpa recai em profissionais que ainda acreditam fazer a diferença, mas quem ou o que faz a diferença hoje na vida de adolescentes que, apesar do acesso fácil à informação, pouco se importam com conteúdos que não mudaram em dois séculos?

As caixinhas a que se reduziram as disciplinas fazem com que os alunos fragmentem os conteúdos e não percebam, por exemplo, a importância da história nas aulas de literatura. Hoje fiz caras e bocas por conta de uma informação que eu acreditava ser óbvia. Ao contextualizar o livro "O Cortiço" e o Naturalismo no Brasil, alguns alunos me disseram não saber o que é uma carta de alforria. "Como assim?" retruquei. Uma aluna me falou no final da aula que "deveriam saber", mas não sabiam. “Lá vem ela com esses vocabulários desconhecidos, lá eu quero saber o que é alforria?” É fato: o óbvio não é óbvio e 2+2 não é, necessariamente, 4. "Professora chata, né?" Outra situação me chamou atenção: ao resumir o livro, alguém concluiu que o João Romão era apaixonado por Bertoleza, e vice-versa, porque o livro é um romance. Assustaram-se quando eu disse algo assim: Bertoleza não conheceu o amor, gente, pensem o que era ser mulher negra e escrava em um período escravocrata? Acreditam mesmo que ela conheceu o amor?  Se não tivessem sido meus alunos, desconfiaria, mas já repeti, milhares de vezes, que nem todo romance é romântico. O fato é que nossos alunos não nos escutam, porque só escutam o que lhes interessa. Tudo o que lhes interessa está fora dos livros e apostilas, fora da sala de aula. Hoje nem mesmo o vestibular os convence da importância do conhecimento.

A verdade é que não conseguimos, na maioria das vezes, fazer a diferença. Ultrapassar o conteúdo para despertar no aluno a vontade pelo aprendizado. E o que a realidade e as redes sociais nos passam? Que Monark e alguns humoristas enriqueceram, fazendo humor e gravando vídeos. Anitta enriqueceu dançando e cantando funk. “Vou postar vídeos de maquiagem e de moda no tik tok e pronto! Curtidas e compartilhamento me tornarão popular e com muitos fãs, serei bombada e ganharei muito dinheiro, faculdade pra quê?” Logo, no Brasil, não só ser professor deixou de ser sonho, mas aprender disciplinas, com conteúdos e metodologias ainda do século passado deixou de ser interessante. Por mais que mudemos nossas metodologias, ao esbarrar na tecnologia não os surpreendemos, pois, nesse quesito, os papéis se invertem, eles nos ensinam. Mas como eternos sonhadores, acreditamos estar na Suécia e insistimos em uma educação há muito incoerente.

O que esperar de um país que coloca aleatoriamente palhaços e jogadores de futebol no poder legislativo? O que esperar de um país que marginaliza a licenciatura, supervaloriza o judiciário: menos escolas e mais presídios, menos cultura, mais segurança. E à saúde resta algo paliativo afinal, não faltam farmácias, não é mesmo? Enfim, como uma professora idealista que ainda sou, por isso permaneço na ativa, refazendo quase que cotidianamente minhas práticas, mais uma vez, desabafo com vocês, queridos leitores e queridas leitoras. Não sei se já perdemos a luta, talvez estejamos em extinção e, como uma peça rara, sejamos, quiçá, mais valorizados, mas não se vê uma luz no fim do túnel. Veem-se teorias que se perdem, profissionais cansados e perdidos. Somos como caixas que, tiradas das gavetas, não entram mais nos trilhos, não formam mais um todo. Hoje na última aula pensei, "rebobina a fita!",  os alunos me responderiam: o que é isso, profe? Bom não entrar em detalhes. Deixa quieto!

 

São José, 27 de maio de 2021.

4 comentários:

  1. Muito importante Rosane e real vamos precisar de muitos profissionais que parecem em extinção, com o estudo desse jeito, é ver pra crer, mas está mesmo muito difícil .

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  2. Com este novo tempo de democratização da informação, mais rápidos, mais produtivos somos mais felizes e criativos? As pessoas se falam a toda hora com mensagens rápidas e superficiais,e perdemos o romantismo da espera das cartas enviadas pelo correio, tiramos muitas fotos e não as revelamos,e nem valorizamos como histórias de nossos momentos marcantes.Tudo é dissolvido na ansiedade do que vem depois,falta amor ao conhecimento, falta reflexão,falta ser.Voltamos à caverna de Platão, voltamos a ver as sombras nas paredes e a tomamos como realidades.Estamos mais do que nunca mergulhados na ilusão dos sentidos.Sua inquietação é pertinente, não deixe quieto,siga a luz fora da caverna.

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  3. O texto é a expressão do que, provavelmente, muitos professores estão sentindo. Acho que neste governo tudo piorou mas o problema da educação formal está para além da escola: penso que nos falta um projeto de sociedade (e de educação) que valorize o sujeito cidadão. Cada vez mais somos considerados nada e isso, sobretudo, precisa mudar!

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  4. É triste imaginar o conhecimento acumulado rejeitado. Sem esse, como construir novos conhecimentos? Aprendemos com os erros e os acertos do passado e, assim, construímos uma sociedade mais cidadã. Como entender o Brasil de hoje sem conhecer o passado? Triste.

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