quarta-feira, 4 de novembro de 2020

“Só quem já morreu na fogueira Sabe o que é ser carvão”

Como manezinhas e catarinenses fomos, durante a semana, enxovalhadas nas redes sociais. Fotos, vídeos e um julgamento, que colocou a vítima no banco de réu, entalaram nossas goelas, restando um nojo coletivo, mas gritamos: “Não existe estupro culposo”. E, por incrível que pareça, nada disso tem me surpreendido, não esperava nada diferente de um povo que, ao colocar certos representantes no poder, institucionalizou a violência, criminalizando movimentos sociais, em especial, o feminismo. Quem não se lembra dos gritos mandando a presidenta Dilma “tomar no...”? Ou dos adesivos para carros, sexualmente ofensivos, vendidos na internet? Já esperava o aumento do feminicídio, do machismo, de mortes por armas de fogo e, o pior, já esperava também um comportamento do judiciário no caso de Mariana Ferrer. Não é novidade que a justiça neste país sempre teve lado e preço, só que antes era algo mais velado, agora está escancarado. Para ilustrar isso, vale uma referência do livro “Boca do Inferno”, de Ana Miranda, que leio esta semana, homens de cabedal “terão suas mentiras para provar que estavam em algum lugar à hora do crime. Têm seus amigos poderosos na Corte e se nada pudermos provar, serão logo perdoados e soltos. Como sempre. Conheces muito bem nossa justiça.” Apesar de hoje vivermos em um país republicano, séculos depois ainda não resolvemos nossos problemas mais graves do período colonial, o estupro é só um deles. Por conta disso, alguns estarrecimentos nas redes não me comovem, muito pelo contrário, me enojam, pois avisos não faltaram, preferiram acreditar em fake News e aderir ao negacionismo científico. Agora não faltarão consequências, pois “quem planta, colhe”, já dizia minha mãe. O fato é que não nos perdoam por ser hoje maioria nas universidades públicas, não nos perdoam quando pensamos, escrevemos, denunciamos e somos quem somos. Não nos perdoam quando chefiamos escolas, hospitais, repartições públicas. Não nos perdoam por não aceitar cantadas e dizer não. Culpam nossas saias, nossos vestidos e batons vermelhos, culpam-nos até por nosso sorriso. Fingem se compadecer de nosso sangue que escorre quando somos arrastadas em vias públicas, esfaqueadas, baleadas, pois ainda nos querem santas, imaculadas e, obviamente, caladas. O mais triste é saber de mulheres que defendem os tais “cidadãos” que reforçam o machismo e que legislam sobre nossos corpos. Abrir a perna, ou morrer? Morra, desgraçada! Uma a menos. Retorno à Ana Miranda: “Uma mulher honrada não deve ir à rua a não ser para seu batismo, casamento e enterro”. Perceptível a semelhança entre o Brasil de hoje e a colônia portuguesa do século XVII, mas há uma grande e fundamental diferença: vamos às ruas sim, vamos aonde quisermos ir, e vamos gritar, porque não aceitamos mais intimidações. Domingo, conversando sobre política com uma amiga, ela afirmou que o prefeito, candidato à reeleição, perderia pontos nas próximas pesquisas. Eu discordei dela e disse que aconteceria exatamente o contrário, que ele subiria. Lógica simples: a culpa é da mulher, sempre, esse é o raciocínio de grande parcela de brasileiros. Este país, que nasceu do estupro de ideias, culturas e mulheres, mantém-se em todos os lugares, por isso ainda somos objetificadas, até quando? Apesar de alguns retrocessos, já temos um caminho a percorrer, um deles é elegendo mais mulheres que nos representem. Além disso, faz-se necessário escancarar a hipocrisia que tanto nos incomoda, em especial quando vemos postagens de pessoas que, na teoria são contra o estupro, mas atrás de mesas têm usado o poder para fazer valer um instinto animal. Já nos reduziram a bruxas, já nos criminalizaram como Medusas, mas como tão bem disse Rita Lee: “Só quem já morreu na fogueira Sabe o que é ser carvão”, resistiremos.

Um comentário:

  1. Sempre bom, sempre um soco no estômago. Já deveríamos estar nos acostumando, mas é difícil conviver com toda essa avalanche de terrores. Cada dia um, em doses homeopáticas! Muito bem escrito, Rosane, tal eu falei no início: como sempre!

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